Noções Invertidas

01 de Abril de 2014
Valdete Braga

Valdete Braga

Estava fazendo compras e quando cheguei ao caixote de uvas, deparei-me com o seguinte cartaz: “favor não debulhar as uvas”. Muito curiosa, não agüentei e perguntei ao dono da quitanda se alguém fazia isto. Os cachos da fruta estavam lindos, dando água na boca de tão bem organizados na caixa e eu estranhei o cartaz.

O dono da quitanda explicou-me que o caixote estava assim bonito porque de tempos em tempos ele vai até onde as frutas estão armazenadas e reorganiza tudo. Disse que as pessoas passam, clientes ou não, e pegam uma (ou mais) uvas para “provar”, deixando os cachos todos despencados.

Não que eu duvidasse dele, mas como ainda tinha um tempinho antes do táxi chegar para levarmos as compras, encostei-me ao balcão e fiquei observando. Não deu outra. Em aproximadamente meia hora duas pessoas “provaram” das uvas. Das duas, uma comprou. Ou seja, prejuízo de cinqüenta por cento para o dono da quitanda. O táxi chegou, peguei minhas compras e vim embora, pensando em como algumas atitudes tão aparentemente sem importância ajudam a definir o nível de educação de uma pessoa.

Eu seria incapaz de entrar em uma quitanda, pegar uma fruta e sair comendo, com a maior cara de pau (e ainda sem comprar nada). Como eu, quero crer que a maioria das pessoas seja assim. O problema é que regras básicas de educação e bom senso vão ficando cada dia mais ultrapassadas, neste mundo de valores invertidos em que vivemos. Se a gente comenta que isso é feio, ainda corre o risco de ser taxada de ultrapassada, e ouvir o clássico “que que tem?” ou “deixa de frescura”, entre outras frases do tipo. Educação virou “frescura”. Bom senso é coisa “antiga”.

O fato, em si, é insignificante. Uma pessoa passa na porta de uma quitanda, pega uma uva, ou goiaba, ou pêssego, leva à boca e segue mastigando, achando o gesto super natural. Estava na porta, ela pegou. Simples assim. Não, não há nada de simples ou natural em um gesto deste. Além do fato do cidadão estar pegando uma coisa que não é dele, ainda o faz à vista de todos e com a melhor cara do mundo. E ai do dono do estabelecimento se falar alguma coisa. É “só” uma uva. “Só” uma goiaba ou pêssego.

Não tenho o poder de ler pensamentos, mas não é fácil imaginar o que passa pela cabeça dessas pessoas: “uma fruta não vai fazer falta para o dono”. Possivelmente não, mas a questão não é esta.

A questão é que está errado. E a noção de certo e errado está difusa, fazemos coisas que não deveríamos fazer sem a menor dor de consciência. Tudo bem, é só uma fruta. Mas isto não muda o fato de estar errado. Ou será que já é certo e eu é que estou ultrapassada? O que sei é que as minhas uvas eu comi em casa, e estavam uma delícia, por sinal.

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