Cabeça, tronco, membros e... celular

28 de Abril de 2016
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

A leitura de artigo a considerar que, “no Brasil, ninguém é obrigado a ficar associado a nada” açulou-me a crítica, pois, como o próprio autor (autoridade constituída na defesa do consumidor) reconhece que esse direito de cidadania tem sido violado por muitas empresas, especialmente as de serviços de telefonia e de TV por assinatura. Segundo ele, a adesão aos planos de serviço dessas empresas é feita de forma rápida, mas quando se trata de o usuário cancelar o serviço, a coisa se complica. Acontece de quase tudo para evitar que o cidadão se desligue do quadro de usuários do serviço questionado.

A própria Constituição Federal diz no Capítulo “I – Dos Direitos e Deveres Individuais e coletivos – Art. 5º alínea II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Registre-se, de passagem, uma crítica à redação do dispositivo constitucional: por que os constituintes colocaram o dever/direito a ser cumprido no futuro (ninguém será obrigado) e não no presente? O mais correto seria “ninguém é obrigado” mantendo assim a lei sempre atual, evitando que advogados mais espertos vejam ali uma brecha por onde defender pilantras. Mas, à parte aspectos secundários, o espírito da lei é pela garantia dos direitos de escolha, ou de opção, do cidadão. Não há como fugir a isso, se não por pura safadeza; coisas do nefando jeitinho brasileiro!

Mas a questão do direito de ter ou não ter, usar ou não usar, vem sendo muito mais atropelado do que pensa o articulista, que só focalizou a má vontade das empresas no atendimento ao usuário pretendente ao cancelamento do serviço. Há também os que, praticamente, obrigam clientes à contratação de serviços fora de sua área, não permitindo o cadastro ou inscrição do não usuário dos mesmos serviços. Tal presunção de algumas empresas tem como origem a estrondosa popularização, nunca antes vista em torno de um objeto; popularização que, à cabeça, tronco e membros, três partes principais que compõem o corpo humano, sugere-se acrescentar: o celular.

Pendurado no pescoço, enfiado no bolso da bunda, carregado na mão, escondido na bolsa ou na pasta, enfim, portado de todas as formas possíveis, o celular tornou-se inseparável do indivíduo, chegando muitos dos seus portadores a perigosa dependência, ou seja, um vício. Não mais conversa e novos relacionamentos, enquanto aguarda sua vez na fila; bares e lanchonetes vendem menos; mais acidentes de trânsito acontecem; trombadas e encontrões nas ruas irritam uns e outros, tudo por causa do celular ou smartphone, agarrado ao ouvido ou a tomar a atenção dos olhos e ação dos dedos. Em casa, pode não haver o pão, que seria garantido pelo Bolsa Família, mas não falta o celular, também já cogitado para entrar na lista das bolsas sociais criadas pelo governo; só não instituída porque as críticas soaram mais alto.

Da orfandade absoluta em relação telefone residencial, outrora restrito aos de maiores posses, de repente, ele deixou de ser propriedade para ser serviço disponível a todos. Com o surgimento do telefone móvel, popularmente chamado celular, em pouco tempo o serviço de telefonia se expandiu, vulgarizou-se ao ponto de hoje, este país grande, bobo e irresponsável, ter mais celulares do que gente! Como tudo serve a algum propósito, não é que algumas empresas e serviços já exploram essa dependência? Bancos condicionam acesso online e nos caixas eletrônicos ao cadastro do telefone celular. Também os serviços de pagamento online exigem o fornecimento do número do celular ao se cadastrar como usuário. A dependência ao celular chega ser um fenômeno coletivo, diante do qual quem não tem o aparelho fica à parte da normalidade; é visto como ser estranho, exótico, meio alienígena. Pura discriminação, como se o cidadão fosse obrigado a ter telefone celular!

Dos que têm o idolatrado aparelho, grande parte não se contenta com apenas um; para cada dia da semana há um diferente ou a multiplicidade dele se faz de acordo com a roupa da ocasião. Mas também uns poucos, por opção, não têm nenhum e não é por isso que devam ser excluídos. O “sem celular”, além da exclusão, ou tentativa – porque há quem reaja e cobre o cumprimento do dispositivo constitucional – tem também de conviver com reações de surpresa, até mesmo com críticas, por não se alinhar à maioria: “você não tem celular?”, “por que?”, “você deve adquirir um, porque faz falta!”. Pergunta-se: e quando ele não existia?

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