Coisas de ontem... e de hoje IV

22 de Março de 2012
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

A conversa se mantém animada entre os representantes da dita terceira idade, demonstrando que essa rotulação fica exclusivamente para os que, não tendo ainda vivido e acumulado tantas experiências, vê a turma do pós sessenta como fim da linha. Coincidentemente, ao se falar em lamparina, recurso dos mais primitivos para romper as trevas, entrava-se no lusco-fusco, aquele período de transição entre a tarde e noite, o que levou ao acendimento das lâmpadas na sala do bar.

– Hoje é tão simples; basta pressionar um botão e a luz se faz instantaneamente; – é a Dolores, que prossegue na sua observação sobre a lamparina – quanto sofri com a tal lamparina! Eu tinha muito medo do escuro, mas a lamparina, se amenizava a sensação de pânico no escuro, causava-me outro mal. O cheiro do querosene era outro suplício. Eu me sentia sufocada.

Dorinha, a mais jovem do grupo estranha o uso do querosene:

– E por que não velas?
– Não sei se eram mais caras, mas o fato é que a maioria usava o querosene. Nas casas pobres, predominava a lamparina. Somente os de mais recursos usavam o lampião, também de querosene. Tenho a impressão de que o querosene era mesmo mais econômico, pois um litro dava para muito tempo.
– O segredo da economia do querosene nas lamparinas está no pavio – intervém o Manelão, desta vez, menos gaiato – pavio mais curto consome menos combustível e produz menos fuligem. Quanto menor a ponta externa do pavio, melhor.
– Você mencionou a fuligem e eu me lembrei de como as pessoas tinham as narinas pretas pela manhã! Mas a pior lembrança que tenho da lamparina está ligada ao que aconteceu comigo, quando tinha ainda cerca de sete anos. Àquela época, deitava-se cedo, mesmo porque não havia muito que fazer, e, a maior parte da população tinha suas atividades concentradas no campo, no quintal, na horta. Criança, então, deitava mais cedo ainda, para liberar os adultos para conversa de adulto. Apanhei uma lamparina com a mamãe e me dirigi ao quarto, onde já dormiam minhas duas irmãs mais novas. À entrada do quarto tropecei em algo e fui ao chão, caindo sobre a lamparina. Imaginem o berreiro que aprontei, levando toda a família a ver o que acontecia. Felizmente, ao cair, a chama se apagou, o que tranquilizou a todos quanto à possibilidade de tragédia, se permanecesse acesa. Entretanto, para mim, com praticamente toda a roupa embebida em querosene, não foi fácil superar o trauma, além do susto que atingiu a todos. Por uns três dias ainda sentia cheiro de querosene em meu corpo, mesmo depois de me banhar várias vezes.
– Mas, Dolores, na sua infância, aqui já havia iluminação elétrica – observa a Chiquinha.
– É verdade – atalha o Mário – mas você se esquece de que nem todos a tinham em casa; porque lhes pesasse no orçamento ou porque residissem em ruas desprovidas de rede. Além disso, durante a maior parte do ano, mesmo as residências dotadas de instalação elétrica ficavam sob a dependência do querosene. A usina só tinha condições de produzir energia, durante o período chuvoso.
– Na minha rua não passava a rede elétrica – esclarece Dolores. Nesse momento, Manelão, virando-se para o Mário, aponta uma dúvida quanto à produção de energia naquela época:
– Explicava-se a luz fraquinha pela pouca água, insuficiente para mover a turbina. Entretanto, quando jogo de futebol, a se ouvir pelo rádio, interessava ao responsável pela usina, a energia se tornava suficiente
– A velha malandragem tupiniquim! – riem todos. E Manelão continua:
– Fato engraçado se deu comigo e um amigo, na adolescência.

Diante dessa chamada, o grupo se põe na expectativa de mais risos, pois fato engraçado anunciado por quem possui, com sobra, aquela qualidade, só poderia ser fonte de mais risos.

– Numa daquelas noites escuras, as lâmpadas a ostentar apenas um sinal vermelho, quase a precisar de que se acendesse fósforo, para ver se estavam acesas, eu e o amigo íamos pela rua. Não se via nada mesmo, mas para quem estava acostumado, andar na rua em tais condições, não era nenhum mistério. Conheciam-se as pedras, buracos e outros obstáculos, de cor. De repente, tivemos nossa atenção voltada para um ponto vermelho à nossa frente. – Deve ser gambá, disse o amigo; no escuro, os olhos do gambá se mostram vermelhos. Não foi difícil, mesmo no escuro, localizar algumas pedras para, em seguida, avançar mais um pouco, cuidando de acertar o alvo na primeira tentativa. Já estava com mão armada ao alto, pronta para lançar, quando percebi o terrível engano. Ao mesmo tempo, senti um calafrio na espinha e gritei “pare” ao meu amigo.
– Era o lobisomem – graceja o Tatão.
– Antes fosse; as consequências não seriam tão sérias.
– E o que era então? – quase grita a maioria.
– Era carro estacionado; um dos dois ou três veículos locais então existentes; um carro de aluguel, como então eram chamados os táxis. O ponto vermelho era o reflexo da brasinha da lâmpada do poste, em sua pintura reluzente.

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