Coisas de ontem... e de hoje X

10 de Maio de 2012
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Empolgada com a possibilidade de a ideia da recuperação dos nomes antigos para logradouros públicos, Chiquinha expressou seu pensamento: – Pois é, gente, a vida se marca pela transformação contínua, desde a concepção até o último alento. O que é hoje não é o mesmo que foi ontem e, também, não será o de amanhã. Mas, ao longo da vida, tanto do indivíduo quanto da coletividade, pontos de referência se tornam imprescindíveis para a história. Entre esses pontos se contam os nomes de logradouros públicos. Ainda que inteiramente transformada, desde sua origem, por equipamentos públicos e construções modernas, uma rua se identifica e é reconhecida por quem nela viveu ou transitou, na infância, e a ela retorna na velhice. Do colchão de palha, onde nascemos, chegamos ao de espuma agregado de alta tecnologia; orgulhamo-nos das nossas origens e pela superação das barreiras encontradas, mas determinadas referências fixadas ao longo do processo fazem falta à configuração de nossas memórias. É, portanto, razoável e necessário que se preservem esses nomes, para que, ao longo do tempo, não se perca parte da memória, tanto individual quanto coletiva.

Enquanto a Chiquinha falava, notava-se impaciência nos olhos da Dorinha, prestes a intervir. Não perdeu tempo quando a outra deu por terminado seu pequeno discurso:

– Uai, gente, que história é essa de colchão de palha? Sabia do de capim, mas de palha nunca ouvi falar – Dorinha teve então sua vez de ser foco das gozações do grupo:
– Você é mesmo a bebê do grupo! Bilu, bilu neném! Nasceu privilegiada e, por isso, nunca teve as costelas feridas por sabugo!
– Pera aí, sou inocente; não tenho culpa por ter nascido depois de vocês! Não pus sabugo na cama de ninguém, mas quero satisfazer minha curiosidade e reparar minha ignorância com relação ao tal colchão.
– Tá bom, Glorinha! Nós perdoamos você por não ter dormido em colchão de palha! – diz Manelão, enquanto Dolores começa a desfazer a “ignorância” exposta pela amiga:
– O colchão era de palha e feito por nós mesmos, sabe? – Palha de quê? – indaga, ela, de volta. – Ora, de milho!

Narita se adianta e explica: - Pelo que sei, a palha de milho era a matéria prima mais abundante e mais ao alcance das pessoas, pois a economia local era, uns oitenta por cento, agrícola. Mesmo famílias, que tinham outras atividades como sustento, mantinham grandes quintais cultivados. O milho era o cereal mais plantado.

Enquanto esclareciam à Dorinha sobre aquele uso e costume antigo, notavam-se risos cúmplices de marido e mulher entre Manelão e Chiquinha; esta mostrando-se decidida em contê-lo de alguma intervenção além da pura gaiatice. Colocando a mão sobre a boca do marido, Chiquinha explica:

– Não há necessidade de explicitar, pois todos sabem da inconveniência do colchão de palha na alcova conjugal; até mesmo a Glorinha, que nunca se deitou num. Mas, nem sempre era possível evitá-la – gargalhadas explodiram em retorno.
– E como era feito?
– O quê? – devolve Chiquinha com malícia à Glorinha.
– Refiro-me ao colchão e não ao que, eventualmente, acontecia sobre ele.
– Da forma mais simples, conforme sua natureza – e Chiquinha continua: – O tecido, listrado no sentido do seu comprimento, era específico para colchão. Quem tinha máquina de costura e habilidade no seu manejo, armava a “carcaça” do colhão à máquina. Não havendo esse recurso, cosia-se à mão mesmo, sempre deixando, na parte central, abertura suficiente por onde se introduzir a palha. Feito o enchimento fechava-se a abertura com costura à mão, e estava pronto o colchão.

Nesse momento, quem se manifesta é a Narita: – Chiquinha, você não falou em que condições eram feitos os colchões; digo colchões, porque numa família, a cada ocasião se refaziam os colchões de todos. Mesmo que o tecido ainda estivesse bom, a palha era renovada periodicamente, quando a matéria prima estava bem seca. O resultado era praticamente colchões novos. A tarefa cabia mais aos filhos, especialmente as mulheres. Antes de encher o colchão havia que desfiar a palha, cortando os nós, para que isso não incomodasse ou, mesmo, machucasse durante o repouso. Entre irmãos, a feitura ou renovação dos colchões era o momento certo para se vingar de maldades sofridas. Introduziam-se, propositalmente, palhas com nós e, até mesmo, sabugos no colchão previamente destinado ao irmão visado. Na primeira noite, nada se percebia, mas à medida que a palha se acomodava, percebia-se o quanto podia ser “querido” ou “querida” por outros irmãos.

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