Coisas de ontem... e de hoje XII

22 de Maio de 2012
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Manelão, sob o silêncio e olhar atento dos demais, continua a contar como se fazia o restauro do chão das casas, mas, em se tratando do Manelão, o que todos aguardavam mesmo era a natureza da traquinagem que ele aprontara. Por isso, o Mário dá mostras de impaciência e ataca:

– Ora, Manelão, você está a nos enrolar! Vá direto ao que motivou seu pai a puxar a cinta para si!
– Calma, gente; eu chego lá. Acontece que antecedentes ao fato, em si, têm de ser conhecidos, para se entender o porquê da reação do papai.

Tatão reforça a advertência do Mário: – temo que você esteja a proceder como político, ou seja, dando voltas no discurso, para não responder o que lhe perguntam.

– Não é isso, não, gente! Eu chego lá! – e continua – no processo de adicionamento de terra nova, havia o peneiramento da mesma; e isso cabia aos molecotes da casa, entre os quais eu me incluía. Depois de peneirada, a gente a transportava em pequenas latas até o ponto onde ia ser usada, no interior da casa. Foi numa dessas viagens que eu cometi a besteira.
– E o que foi? – perguntaram quase que em coro.
– Antes, tenho que contar o porquê da besteira, pois tudo tem um motivo, certo? Até mesmo as bobagens que fazemos têm origem. Eu ainda não alcançava o peitoril da janela, um tanto alta, e por isso mantinha um banquinho junto à parede, para alcançá-lo. Gostava de ver a rua, de pouco movimento, é verdade, mas que sempre atraia: eram as galinhas soltas, os passarinhos, muitas borboletas, especialmente uma espécie azul, grande, que voava por todo o percurso da rua, como se em busca de algum endereço. Entretanto, nos momentos, sempre à tardinha, em que minha irmã mais velha se debruçava na janela, eu não podia estar ao lado. Ela me dava cascudos e se eu teimava, chutava o banquinho para que eu não subisse.
– Devia ser algum namorico, daqueles furtivos de antigamente, e você estava a atrapalhar, Manelão! Pode ser que fosse mesmo namoro de mão única, em que ela suspirava por um olhar e ele não dava a mínima para ela, coitada! – Dolores faz o comentário e a Chiquinha acena, afirmativamente, com a cabeça, confirmando as suspeitas de namoro não correspondido.
– Ora, isso não me interessava; o que eu queria era também chegar à janela. Ela nem imaginava como eu ficava furioso com sua atitude. Entretanto, não havia como lhe dar o troco. Foi na recomposição do chão que vislumbrei a possibilidade de vingança. Numa das latas de terra, que levei, coloquei alguns cacos de vidro e espalhei tudo junto à tal janela; só que não me contentei em espalhar. Escolhi alguns cacos e os coloquei, estrategicamente, em pontos onde, provavelmente, minha irmã pisaria. Enquanto fazia isso, papai chegou silenciosamente e se postou atrás de mim, apanhando-me com a boca na botija. Ele, que sabia das minhas rusgas com a mana, entendeu logo e iniciou o sermão. Ao mesmo tempo, tirou a cinta e avançou. A mamãe que, de longe, ouvira sua voz alterada, chegou no momento em que levantava o couro para descer sobre o meu lombo.
– Você merecia mesmo apanhar, Manelão! Atentar contra a própria irmã, de forma tão cruel, foi demais! – censura Narita.
– Naquela vez fiquei livre da surra, mas fui obrigado a retirar toda a terra que eu colocara, escolher outra, peneirá-la e levar ao mesmo ponto, para ser compactada; o banquinho foi afastado da janela e dada ordem a todos da casa, para que eu não o usasse, de forma alguma; algumas tarefas, das mais leves, que cabiam a minha irmã, na distribuição dos afazeres domésticos, papai ordenou que eu as executasse durante quinze dias; durante quinze minutos por dia, numa semana, inteira fiquei ajoelhado sobre caroços de milho.
– Ah!, eu pagaria para ver sua cara e o que fez para fraudar o castigo! – diz o Quinzão, enquanto o restante do grupo se desmancha de rir. E Dorinha ainda provoca: – Mas, só quinze minutos?
– Fraudar “tais” brincando! E você, Dorinha, fique apenas cinco minutos de joelhos sobre o milho; parece a eternidade! O castigo era à frente da mamãe, durante momentos de descanso de afazeres mais pesados, aproveitados para remendar roupas, fazer um bordado... essas coisas. Ela me livrou da surra, mas em relação aos demais castigos nem pensou em contrariar o papai. Ela também não dava moleza. Durante os quinze minutos, dava conselhos, dizia que aquele sofrimento seria para eu refletir sobre a tentativa de ferir minha irmã; que eu nunca mais deveria sequer pensar em causar danos a qualquer pessoa; que o castigo imposto lá fora, pela lei, poderia ser anos de cadeia por mal cometido a outrem; que, na cadeia teria que conviver, não com a minha irmã que me amava e a ajudava a cuidar da casa e dos irmãos, mas com pessoas desconhecidas, que poderiam me prejudicar ainda mais; que as pessoas devem se respeitar, para serem respeitadas.

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