A galinha 14 Bis

26 de Agosto de 2011
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Estava eu a poucos passos dos dois garotos - ambos com algo em torno de oito anos - em animada conversa. Contudo, não se podia ouvir bem o que diziam, em razão do barulho ensurdecedor de carros, caminhões e carretas a deslizar pela rodovia. Em dado momento, do garoto de voz mais firme, ouvi: - mas, galinha não voa! O outro, parecendo não concordar, balançava o corpo e com as mãos fazia gestos, possivelmente a mostrar como ele vira a penosa dominar o ar. Ao que seu companheiro sacudia a cabeça e repetia: galinha não voa, não voa e pronto!

Pensei em me achegar e tomar parte da conversa, ouvir o relato do primeiro garoto, mas reconsiderei a ideia, optando pela não intervenção no colóquio infantil. Embora não tivesse ouvido tudo, pude entender que um defendia ponto de vista com base em experiência tida, enquanto outro o rejeitava só porque nunca tivera a mesma experiência e, talvez, sua mente já escapasse do universo infantil, onde imaginação e fantasia não sofrem censuras.

De fato, galinha não voa. Quando muito, usa as asas para saltar sobre cercas e muros ou para não se esborrachar no chão. Mas, o insólito, por vezes, acontece. E, assim sendo, a conversa dos garotos me levou à fase de transição entre infância e adolescência, quando então os brinquedos convencionais não mais satisfaziam e o espírito inquieto buscava aventuras e experimentos ousados, ainda que sob riscos de acidentes com sérias consequências. Naquela época, viagem espacial ainda pertencia ao mundo dos sonhos de malucos, não havia saltado das páginas em quadrinhos, cujos conteúdos eram absorvidos com avidez, para abrir mais a imaginação infanto-juvenil. Na área prática, tudo que levasse a pequenas explosões e deslocamento de objetos era experimentado, quando olhos vigilantes não estavam sobre nós. Uma das brincadeiras consistia em encher pequenos vidros com água, arrolhá-los bem e os colocar sobre a chapa do fogão (fogão a gás também não havia), que ficava acesso durante todo o dia. O resultado era o estampido, o lançamento da rolha ao alto e o vapor a dominar o ambiente.

Certo dia, ao por os olhos em alguns “rodos” (“rodo” era abreviatura popular da marca Rodouro) vazios de lança-perfume, então apenas brinquedo carnavalesco, não usado como droga fora de estreito círculo mais atrevido, vislumbrei possibilidade de avançar além das “experiências” com os vidros na chapa quente. Nossa casa, dotada de grande quintal, ficava logo atrás da capela de Santo Antônio e o companheiro de traquinagens morava ao lado. Mostrei a ele o “rodo” e expliquei o que pretendia fazer: encher com água e aquecê-lo em pequena fogueira.

Retirada a válvula do apetrecho de alumínio, tivemos grande dificuldade em fazer o enchimento, pois não queríamos alargar muito o diminuto furo original. Para vedar, utilizamos caule verde, bem firme. Acesa a fogueira, ao lado da capela, o “rodo” foi lá colocado e aguardamos o resultado. Depois de alguns minutos, ouviu-se chiado alto e forte como o de rojão de vara. O tubo de alumínio lançou-se ao ar, impelido pelo empuxo dado pelo vapor expelido, subiu alguns metros, depois desceu e, em zig-zag, sobrevoou a área do “experimento”, obrigando-nos a abaixar para não sermos atingidos, antes de se chocar contra a parede de uma das casas. A fogueira, parcialmente apagada, espalhara cinza por todos os lados e às janelas das casas muitos rostos se viam em franca reprovação àquela travessura. Entre assustados e satisfeitos com a brincadeira, estávamos sentados na grama a alguns metros da fogueira, quando outro barulho, às nossas costas, nos pôs em sobressalto. Uma galinha, a gritar como só fazem as da espécie, quando assustadas, saltou do nosso quintal e, à altura do telhado, desapareceu do outro lado da capela. Pensava-se que fosse pousar na grama, mas gritos desesperados indicavam que continuava em seu voo destrambelhado. Um pouco mais, e, eis que surge à frente, em nossa direção, sempre à altura do telhado da capela de Santo Antônio, depois de contorná-la. Acompanhamos o restante do seu voo até que pousou no mesmo ponto de onde partira.

De forma similar ao feito de Santos Dumont, ao levantar voo, contornar a Torre Eiffel e aterrissar com seu 14 Bis, provando que o mais pesado que o ar pode voar, aquela galinha demonstrara que sua espécie também pode alçar-se ao ar e manter voo controlado. Se não o faz é porque ciscar o chão melhor lhe apetece. Pode-se dizer que assim é também a espécie humana, à qual se abrem inúmeras possibilidades, nem de longe sonhadas porque interesses mais próximos, imediatos e palpáveis a desviam de objetivos nobres.

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