Banquete dos abutres

10 de Setembro de 2011
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Sei do risco de melindrar pessoas com o tema, tabu para uns, recorrente para outros, mas a todos ligado, indistintamente, desde o momento em que se abrem os olhos para este mundo. Se ainda o “desconfiômetro” não fez acender a luzinha, digo que o assunto é a morte, a mais franca das realidades na vida, encontro indefinido no tempo, espaço e forma, porém certo e irrevogável quanto à sua ocorrência e com a qual todo ser vivo terá um dia.

Na cadeia da vida, na natureza, em decorrência da racionalidade, pressupõe-se a espécie humana como a mais ou, entre alguns, a única consciente do fenômeno morte. Essa condição, aliada ao fator desconhecido no além, leva a comunidade humana a se posicionar de formas diversas, seja quanto ao que se espera no além-túmulo ou quanto ao trato a se dar aos despojos cujo destino final, também irreversível, é a desintegração completa e retorno aos elementos químicos de que se formam. Embora grande maioria aceite a continuidade da vida além-túmulo, de alguma forma, como parte de sua respectiva crença religiosa, espécie de culto ao corpo – como se este fosse mais importante – persiste e alimenta um comércio insensível, que explora o semelhante em momentos dos mais dolorosos, quando indivíduos do círculo próximo ao pranteado estão, psicologicamente, mais frágeis. O “culto” persiste por anos e se constata pelas visitas aos cemitérios, desde as diárias até as anuais como o aniversário de falecimento e o Dia de Finados.

Para se preservar a memória do finado, bastaria manter vivos seus ideais, dar continuidade ao bom trabalho por ele desenvolvido e perdoar-lhe as faltas, os erros, ainda que tenham deixado sequelas. Entretanto, todos são compelidos a gastos supérfluos, como se o finado deles dependesse ou ainda entre vivos estivesse, pesando essa “obrigação” mais sobre ombros de menores posses.

Mediante comerciais bem produzidos e argumentação apelativa, são lançados, nesse mercado lúgubre, cemitérios com nomes sugestivos e preços nada condizentes com a realidade orçamentária de cada um. Um dos argumentos se prende à preocupação, dizem, que cada um deveria ter com a própria morte e consequências imediatas, não deixando, para os que ficam, o peso da responsabilidade com relação ao funeral, ao túmulo, etc. Com o devido respeito aos que pensam de forma diversa, digo que a responsabilidade de dar o destino final ao defunto cabe aos vivos, exclusivamente, aos que ficam, sejam familiares ou não. Dirão, talvez, ser posição egoística, mas aponto o bom senso como base para ela. O indivíduo, embora certo de que a morte é inexorável, tem o direito e deve viver sem se preocupar excessivamente com ela, cuidando, sim, da saúde e dos modos de vida, com relação a si próprio e ao seu semelhante. A morte não deve ser olvidada, mas sua lembrança no quotidiano do indivíduo, por paradoxal que pareça, deve ser com foco exclusivo sobre a vida, bem vivida, que inclui o lado material, porém sem os exageros e o apego demasiado às aparências que o mundo oferece. Viver bem, entende-se por consciência em perfeita sintonia com o melhor para si e para o semelhante, em quaisquer circunstâncias: ventura ou desdita, fama ou anonimato, riqueza ou pobreza, saúde ou doença, alegria ou tristeza.

Cumprida, dessa forma, a passagem por este mundo, o indivíduo terá assegurado o melhor cuidado com seus despojos que, certamente, lhe proporcionarão os do seu círculo social. Aparatos formais no funeral, tipo e aparência do cemitério, nada significam e nada acrescentam ao passado do finado. Alimentam, sim, a vaidade dos vivos, ou tentam substituir pedras atiradas em vida, além de rechear, acima do necessário, contas bancárias dos que exploram essa necessidade. Registre-se, na oportunidade, que site do setor diz que “cemitério, hoje, é um bom negócio”!

A exploração dessa necessidade e do sentimento alheio chega ao cúmulo da crueldade sob a forma de planos funerários, cujo comércio foi denunciado, recentemente, por jornal de grande circulação. Um desses planos já levanta suspeita pelo fato de atuar em regiões das mais pobres do território mineiro, entre pessoas simples do meio rural, analfabetos e semialfabetizados, mediante simples carnê, sem contrato com as especificações dos deveres e dos direitos de parte a parte. Abutres se alimentam de corpos de animais mortos no campo, mas, idealizadores e exploradores de tal plano funerário devoram seus “clientes” ainda em vida, sugando-lhes sangue e suor.

É o cúmulo da crueldade dentro da comunidade, que se diz cristã!

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