Coisas de ontem... e de hoje III

10 de Março de 2012
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Passada a estrondosa gargalhada, cessadas as brincadeiras relativas à jocosa intervenção do Manelão, e, utilizando-a como gancho, a conversa deriva para saneamento. Há quem proteste, a dizer que a conversa teria se desviado radicalmente, passando de comida para esgoto:

-que coisa mais disparatada! E eis novamente o Manelão a contradizer a reclamação:
-Desviou coisa nenhuma! A conversa só seguiu seu curso lógico e normal. O assunto não era comida? E qual o destino dela depois de digerida? (mais risadas).
-E que diferença de outros tempos! – exclama Narita, – nada de vasos noturnos.
-Vaso noturno? – protesta alguém. –Deixe de frescura; é pinico mesmo! – É isso aí – concorda Narita – as novas gerações não sabem, nem de longe, como era viver naquela época de pouco ou nenhum recurso nesse aspecto -Isso, para nós, aqui – aparteia seu marido, Quinzão – muita gente, por este mundo afora, ainda vive sem esses recursos e sujeitas a muitas doenças, que hoje não mais têm sentido. Narita dá continuidade:
-Cabia, então, às donas de casa providenciar para que o mínimo de higiene prevalecesse, o que não era nada fácil, sobretudo quando se recebiam visitas.
-Creio que você se refere às donas de casa, das mais pobres – intervém Dolores – porque as de médios recursos para cima contavam com a figura da empregada; esta, sim, tinha que se virar para contornar situações constrangedoras e deixar tudo dentro dos conformes.
-E papel higiênico, comprava-se na farmácia? – indaga alguém do grupo mais calado -Cê tá brincando ou não é deste planeta! – ironiza Manelão – Não havia dessas frescuras. Qualquer papel servia e era a principal função do jornal, picado em quadrados! Os dois de cima não liam, mas ao de baixo valia a intenção! Com esta observação do sempre engraçado Manelão, a zorra se instala de vez no recinto. Embaladas pela bebida generosa, gargalhadas estrondam e há quem quase chega a pique de mal-estar, com lágrimas a correr sob tanto riso. Copos e garrafas caídos no ladrilho viram cacos e, neles, quase se fere o Mário que foi ao chão, com cadeira e tudo, no meio da confusão. Quando se imagina a volta à normalidade, alguém dá repique com outro chiste em cima da piada original e, aí, tudo recomeça. O alarido é tão grande que, fora, junto à porta, chega a juntar curiosos a indagar do que se trata. Demora algum tempo até se restabelecer o equilíbrio emocional do grupo, ainda que com a fala um tanto arrastada por parte de alguns, enquanto também se recompõe o local do caos em que mergulhara. Quando todos, novamente, se sentam, é a Chiquinha que mexe com o Manelão:
-Então, naquela época não havia aquele com textura de pétalas de rosa, perfumado, trazido pelo Alfredo, o mordomo, em bandeja de prata? Antes que o Manelão volte com mais uma, o Tatão suplica: - pelo amor de Deus, gente, não aguento mai rir! – Olha para Manelão e prossegue: - Depois de todas essas considerações sobre o que faz o não saneamento, para ficar só na comodidade, é importante ressaltar a importância de uma invenção: a do vaso sanitário. Não é o automóvel, não é o avião, não são os satélites artificiais, não é a televisão, não é o computador e não é a internet que nos caracteriza como civilizados. O que abriu caminho para a civilização foi o vaso sanitário! Antes dele, todo e qualquer povo ainda é meio selvagem! E nesta condição estive incluso, pois quando daqui saí ainda imperavam as latrinas nos fundos dos quintais: fossa coberta, caixote em lugar do vaso e construção tosca em volta, daí também o nome “casinha”. Vaso sanitário com esgotamento também em fossa era coisa de rico!
-Gente, que coisa primitiva! – exclama a Dorinha, mais jovem do grupo e nascida quando as coisas já melhoravam. Chiquinha, ante os olhos arregalados da Dorinha, aguça ainda mais seu espanto:
-Tatão falou na latrina, ou casinha, terminada em construção tosca, de adobe ou tijolos. Sabe-se, entretanto que havia construções mais pobres ainda: paredes de varinhas ou de bambu, forradas na parte interna com pano escuro.
-Havia também de palhas de bananeira – observa Quinzão – Eu tinha apenas dez anos quando vi meu vizinho e colega de escola quase morrer no incêndio da latrina no seu quintal. Era noite muito escura e ele se valeu da lamparina para ir até lá. As paredes da casinha eram feitas de folhas secas de bananeira, que se incendiaram quando a lamparina, inadvertidamente, foi colocada muito próximo.
-Lamparina! Parece coisa da era das cavernas, mas esteve bem presente na minha infância – lembra Dolores.
-Pois é, naquele tempo, querosene era gênero de primeira necessidade – conclui Manelão.

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