Coisas de ontem... e de hoje LXXXII

01 de Dezembro de 2013
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Quinzão, atento à fala da Dolores, também se manifesta:

– Manelão tem razão; as dificuldades de locomoção davam à freguesia maior sensação de unidade à parte, além de abandonada.

– A mim, impressiona a maneira como as pessoas confiavam entre si, resolvendo tudo por meio da figura do procurador – fala a Dorinha – dá para acreditar em movimentação de conta bancária por meio de procuração?

– E podia confiar! – reforça Dolores, relatando exemplo – Testemunhei fato muito comentado, na época, que demonstra o grau de honestidade e respeito, então reinante entre as pessoas. Pessoa necessitada de dinheiro confiou algumas joias a procurador, para que as vendesse em Ouro Preto. De posse da preciosa mercadoria e do documento, que o autorizava a vendê-la pelo preço que achasse conveniente a quem quisesse comprar, o procurador partiu para a sede municipal, a cavalo. Na manhã seguinte, um estranho chegou ao cartório, apresentando espécie de bornal de couro, explicando que o teria encontrado no caminho e o entregava ao escrivão por conter procuração de sua lavra. Eram as jóias levadas no dia anterior. E coincidência das coincidências: o homem tinha o mesmo nome do procurador que, pouco depois, voltava desesperado, contando que chegara ao destino sem a mercadoria. Ao tê-la de volta, das mãos do escrivão, o homem levou outro choque, desta vez de alegria.

– Será que isso aconteceria, hoje? – Tatão pergunta e quem responde é o Manelão:

– Se não as perdesse, o procurador “daria o nó” no proprietário, sujeitando-se o pilantra a aparecer na mídia como “autor” do crime, agora denominado apropriação indébita. Entretanto, qualquer advogado o livraria da cadeia e tudo acabaria bem, menos para a vítima que se tornaria ex-proprietária das joias. Não precisaria ser muito inteligente, se quisesse disputar cargo político e ganhar, valendo-se da exposição na mídia. Se perdesse as jóias, saíria com mais vantagem o desconhecido, outro pilantra que nunca ninguém saberia quem.

– Penso que você está totalmente equivocado – é a Dorinha a contrariar, explicando, logo em seguida – Creio que nem uma nem outra coisa aconteceria, pois hoje não há quem confie tal encargo a alguém.

– Taí, a tese da Dorinha condiz mais com o espírito da época que vivemos! – exclama Tatão.

– Gente – é a Chiquinha a chamar a atenção – a verdade é que a relação de confiança, existente outrora dentro da sociedade, foi pro brejo, no momento em que se inverteram os valores, começando por justificativas sociais para desvio de conduta e toda sorte de crimes, nos quais deságuam, puxados pela cobiça. Nossa infância foi vivida entre pessoas mais rudes, grande parte analfabeta que, apesar de tudo, valorizavam e eram valorizadas em seu ser, não importando o quanto tinham ou não tinham. As pessoas batalhavam também por vida melhor, porém, comedidamente, “medindo a água e o fubá”, como então se dizia, ou sem “avançar na lua como se ela fosse queijo”. Cada qual vivia sua vida dentro do seu próprio ritmo e, para atingir pontos mais altos, na escala, não se queimavam etapas.

– Ei, Dolores – agora é a Narita a manifestar curiosidade:

– Tendo morado ao lado do cartório, convivido com a família do escrivão e testemunhado muito do que ali ocorria, você deve ter muitas histórias a contar.

– Isso seria indiscrição da minha parte. – Chiquinha, percebendo que a sugestão teria melindrado Dolores, procura contornar a situação:

– Imagino o que pensa a Narita e posso lhe garantir que não se trata de intromissão na privacidade de ninguém. Também eu nutro curiosidade em torno de cenas de casamentos.

– Ah!... bom! Isso é público e não se revelando nomes, não há mal algum. Conta-se o pecado, omite-se o pecador!

– Gente, martírio para as noivas era o “desfile” de casa para a igreja e/ou para o cartório – comenta Lazinha – Quanto mais longe ela morava tanto maior era o “castigo”. Quem não se lembra? Era aquela exposição desnecessária, cansativa e cruel; vestida de branco, sapatos inadequados para o chão pisado e olhares curiosos sobre si. Às vezes, os dois moravam em pontos opostos e, então, eram dois cortejos a desfilar por ruas esburacadas, poeirentas ou barrentas, cheias de mato...

Ao ouvir referência ao mato nas ruas, Chiquinha não se contém:

– Vocês se lembram daquela menina, cujo vestido se enganchou num ramo, vindo a rasgar-se?

– O pior não foi o vestido rasgado – explica Dolores – porém, a birra que ela aprontou, querendo voltar para casa. Segundo mexericos correntes, aquela moça se casava por imposição do pai, que esperava realizar negócio vantajoso com o pai do noivo. Ela tentou usar o incidente do vestido rasgado, coisa mínima, diga-se de passagem, mas a vontade do pai foi mais forte.

– Ela, então, se casou mesmo? – indaga Dorinha.

– Casou-se. E, aparentemente, o casamento deu certo. Pelo menos, ela nunca demonstrou estar infeliz ao lado do marido.

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