Coisas de ontem... e de hoje LXXXIX

10 de Fevereiro de 2014
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Ainda com a palavra, Quinzão ressalta e compara o comportamento humano diante da morte:

– Por sua natureza como porta de entrada em presumível mundo ou estado do ser, envolvido em mistério, muito discutido, porém nunca revelado, a morte é sempre encarada com sentimentos de tristeza, medo e perda. É fenômeno natural, paradoxalmente ligado à vida, assim como o é o nascimento, porém não aceito em sua plenitude. Embora continue sendo encarada como algo negativo, no passado esse aspecto era mais realçado e exercia interferência maior entre os vivos.

Valendo-se de pausa feita por seu marido, Narita comenta:

– Entendo que o indivíduo não deve se esquecer de que, um dia, para si, tudo neste plano terá fim. Portanto, acima dos valores materiais, devem ser considerados os valores morais no relacionamento com o mundo. E a crença religiosa, para os que a têm, é a baliza pela qual se orientam nesta vida, visando chegar ao seu término sem motivos para arrependimento tardio. Entretanto, não vejo razão para morte como assunto recorrente, no limite do bom senso, que valoriza a vida. Por isso, em minha juventude, sempre considerei de extremo mau gosto certo ofício religioso, intitulado “Exercício da boa morte”.

– Engraçado! – exclama Dorinha – Já ouvi algo a respeito, mas imaginei tratar-se de pilhéria. Isso existe mesmo?

– Pelo menos, existia, há algum tempo.

– Certa vez, participei de um “exercício” desses e, realmente, considerei-o deprimente – revela Lazinha. Era uma sucessão de pontos autocríticos intercalados por rogações. Chegava-se a levar o indivíduo à imaginação de si próprio, no leito, sob os estertores da morte.

– Cruzes!.. – volta Dorinha – Indivíduo à porta da depressão podia ir pro “beleléu” depois do tal exercício.

– Coisa também deprimente era o luto – lembra Chiquinha – não se esquecendo de que tinha peso maior para as mulheres.

– É verdade – concorda Dolores – todo seu guarda-roupa era tingido de preto por um ano, enquanto aos homens bastava camisa preta ou fita da mesma cor na lapela do paletó, no bolso da camisa ou na manga desta. Aquelas de maiores posses encomendavam confecção da roupa preta, mas maioria tingia mesmo. Além da roupa preta, pessoa enlutada não podia ir a festas como baile, carnaval, etc.

– E quando, no finalzinho do período de luto, outro parente próximo também “batia com o rabo na cerca”? – lembra Manelão – o luto continuava por mais um ano... isso, se mais parente amigo da onça não “resolvesse” sacanear.

Dorinha não perde a oportunidade de espetar o Manelão:

– Mas, você, hein? Não descarta nem morte como alvo de seus deboches!

– E por que deveria ser poupada, se tão natural como a vida? Pior explorá-la ou tê-la como motivo para explorar fragilizados por ela.

– Desculpe, amigo – recua Dorinha – e concordo com você no que se refere à exploração da miséria humana!

– Pois é – manifesta-se Tatão, também concordando – transformaram em grande “indústria” o que deveria ser algo bem simples e condizente com a matéria em transformação. Mas, os exploradores culpados únicos não são, havendo a vaidade, o remorso e outros vícios a motivar o supérfluo, quando o necessário deixa de ter lugar para o finado. Cultuada como castigo sob ignorância e superstições, no passado, a morte converte-se em fonte de lucro, sob esperteza e ganância, no presente.

– Mas, muita gente faz questão do supérfluo ou desnecessário, nessas ocasiões, motivada por sentimentos não bem revelados – argumenta o Quinzão.

– Mas, é o que já disse – reforça Tatão – exploradores da morte se apóiam no remorso dos que optaram pela omissão, desprezo e abandono em vida, ou na vaidade humana, que encontra razão em tudo para se manifestar.

Dorinha ouve os três e pergunta:

– Gente, por que tantas flores ao túmulo depois de pedradas recebidas em vida?

E é Tatão quem responde:

– Parte se explica pelo dito anteriormente. Mas, no fundo, no fundo mesmo está o medo do desconhecido, esse tremendo dragão, que nasce com o indivíduo e com ele vai ao túmulo. O medo do desconhecido é inerente à condição humana. Ainda que diga não crer no além túmulo, o indivíduo quer se precaver , mantendo-se em paz com aquele que se foi. Já dizia Cervantes: “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay!”

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