Coisas de ontem... e de hoje XC

17 de Fevereiro de 2014
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

– “Eu não creio em bruxas, mas que elas existem, existem!” – Tatão continua a expor sua opinião – No pensamento de Cervantes se expressa o dilema humano diante do desconhecido e, por ele explicam-se comportamentos diversos diante da morte. Orgulho, vaidade e pretensões à supremacia no esquema universal, muitas vezes, não permitem o reconhecimento do inexplicável, ainda que fortes evidências confirmem sua existência. Daí, para os que se sentem diminuídos, admitindo sua ignorância e impotência, a única saída é a negativa. Negam; contudo, mantêm-se com um pé atrás!

– Então, Tatão, você considera o medo como causa do comportamento humano diante da morte? – pergunta Dolores.

– Em grande parte, sim; não só de morrer como também o de hipotético contato com o além. Muitos são os exemplos do contraditório verificado em velórios. Vela-se um corpo, pressupostamente morto, entre lágrimas e lamentações pelo ocorrido – “que pena! Fulano deveria estar vivo conosco”. “Ele/ela vai fazer falta para a família”. Há até exageros, movidos por causas ocultas: “era preferível que eu morresse em seu lugar”, “leve-me com você”. Se o “defunto” sai da morte aparente e se senta no caixão, não fica um, meu irmão; como diz o samba. Todo mundo cai fora! – Manelão não deixa passar a oportunidade:

– Pagaria boa soma para assistir cenas como as que você relata com base em notícias sobre casos acontecidos. Deve ser engraçado, pois a reação ao insólito, no caso, contradiz a sensação de perda, manifestada pelas lágrimas e troca de impressões, sempre elogiosas sobre a figura do finado. Perda de carteira recheada de dinheiro resulta em desespero por parte de quem a perde. E se, depois de muito lamentar e trabalhar em sua busca, ela é recuperada, o regozijo redunda em até celebração festiva. Não é esta a reação imediata de quem assiste à “ressurreição” de pressupostamente morto e exposto à curiosidade pública, antes de ser levado a receber terra sobre si e assim se confundir com a própria, ao logo dos anos. Mesmo idolatrado(a), em vida, ao se cerrarem os olhos para esta, ninguém mais quer vê-los abertos, ainda que dito, hipocritamente, o contrário nas poucas horas que antecedem a viagem ao cemitério.

– Você tem razão – retorna Tatão – Mesmo porque raros, sem chance de se acostumar com eles, casos de falsa ressurreição diante do público constituem oportunidades, também raras, de testemunho da frágil condição humana diante do desconhecido. Nesses momentos cai por terra a máscara com a qual cada um se mostra ao mundo. Repare que depois de morta, qualquer pessoa se torna “santa” pela língua da maioria, ainda que, em vida, tenha sido pintada como demônio. Fala-se em respeito aos mortos, mas nesses casos, o que move a bajulação post mortem é o medo de ser punido pelo defunto.

Do grupo feminino, ligeiramente emudecido depois que a conversa se desviou do casamento, vem a pergunta da Lazinha:

– Que me diz, Tatão, do comércio de sepulturas por parte de organizações exploradoras de cemitérios?

– Em princípio, é legal porque a lei permite. Entretanto, esse comércio é determinado, de um lado, pela vaidade aliada ao poder pecuniário, que atrai, do outro lado, a esperteza e o interesse econômico. Há pessoas que esperam ser destacadas, separadas das demais, até depois da morte, razão pela qual, gastam dinheiro antecipadamente com a morte, para gáudio de empresas e organizações papa-defuntos. Agora, pergunto: há necessidade disso? Corpos têm um só fim, não importa quem tenham sido em vida. Todos voltam à condição primária, ou seja, reduzem-se aos elementos químicos que os compõem.

– Com toda essa exploração mais a fragilidade humana nesses momentos difíceis, pessoas pobres pagam alto por serviço funerário – volta Lazinha.

– Por isso mesmo, penso que tal serviço deveria ser público, oferecendo-se o básico, decente, sem tirar a opção, no campo privado, de serviços mais aparatosos para os que assim desejam e podem pagar. Quanto ao destino dos corpos, sem exceção, deveria ser a cremação.

– Ora, Tatão, meu bonito corpo virar churrasco? Não quero, não! – ataca Dorinha em tom de blague.

– Que churrasco, Dorinha! No crematório, o corpo vira cinzas. E, desde quando defunto tem querer? – contra-ataca Manelão.

E Tatão volta a defender sua tese em torno cremação:

– A cremação oferece muitas vantagens. A primeira delas é de natureza sanitária, livrando a vizinhança e o lençol freático de eventual contaminação, sem contar a eliminação da causa de efeitos psicológicos, que é a vista de cemitérios para os susceptíveis.

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