Coisas de ontem... e de hoje LXXXV

22 de Dezembro de 2013
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Manelão provoca risadas com suas pantominas. Ao debochar do arremesso do buquê da noiva, ele simula como teria sido a cena em que alguém apanhasse, no ar, a braçada de copos leite: cai de pernas para o ar. Mário e Quinzão se apressam para socorrê-lo quando, num salto, ele se põe de pé. Só aí se percebe que a queda também foi simulada... mais risos em torno dos dois “socorristas”. Terminada toda a bulha, Dolores retoma a palavra:

– Detalhe dos mais curiosos, aos olhos de hoje, estava nos sapatos ou, para ser mais precisa, no seu uso. Grande parte da população andava descalça, tendo o calçado apenas para ocasiões especiais, uma delas, o casamento. Muitos o usavam “pra vê Deus”, indo à missa aos domingos. Imaginem como se sentia o pessoal da zona rural, ao acompanhar o cortejo de casamento. Quem vinha montado não tinha tantos problemas. Quanto aos pedestres, na maioria das vezes, vinham descalços até pequeno curso d’água, nas proximidades, onde lavavam os pés e calçavam. Dava para perceber o sacrifício que faziam para ter os pés calçados, tanto homens quanto mulheres. Uns poucos mais autênticos mandavam o costume civilizado às favas, passando a carregar os sapatos pendurados pelos cadarços.

– E as roupas, hein? – intervém Chiquinha

– Pois é, no geral, não variavam muito: era chita para a pobreza, entre as mulheres, e brim cáqui para os homens. O noivo se esmerava na casimira – “gasimira” no popular – azul marinho, assim como homens de melhores posses.

– E o mais curioso, com relação ao terno de “gasimira”, talvez vocês não saibam – atravessa Manelão, já a ensaiar suspense, quando Narita o corta, frustrando seu plano:

– É que a roupa do casório podia virar mortalha!

– Ah! cruz, Ave Maria, credo! conversa mais sem graça! – protesta Dorinha.

– Verdade! – volta Narita – era dito que se guardava a roupa entremeada por ervas especiais, proteção contra traças, para que ao morrer, fosse com ela enterrado.

Tatão que, há muito, está calado, resolve intervir:

– Ora gente, isso não passa de mito criado pelo povo. A verdade é a seguinte: o terno do casamento, para homens de condições humildes, era luxo adquirido com muito sacrifício, porém considerado válido pela importância do momento. Assim como a noiva não dispensava formalidades e os símbolos consagrados pela tradição, o noivo concentrava no terno de casimira azul marinho toda a simbologia material do casamento. Para muitos seria sua única roupa digna de momentos sociais, aos quais nunca compareceria. Logo, o terno era guardado como espécie de relíquia, assim como muitas mulheres guardavam seu vestido branco. Aconteceu, vez ou outra, de o terno do casamento ser usado para vestir seu dono quando defunto; e aí, surgiu o mito, coisas da cultura popular...

– Nossa enciclopédia ambulante tem sempre a explicação para tudo – comentário de Manelão, seguido de pergunta à Narita:

– Você disse ervas especiais; por que não naftalina?

Mas é Tatão quem responde:

– Além da desconfiança em relação às chamadas “coisas da cidade”, o homem do meio rural detinha conhecimento sobre muitos recursos naturais, facilmente ao seu alcance.

– Não se esqueçam de que a indumentária masculina não estava completa sem o chapéu – lembra Chiquinha – o papai é que nunca foi muito chegado a ele. Como possuísse muito cabelo, dizia que chapéu teria sido criado para carecas. Para os demais, aquilo não passava de estorvo, segundo ele, que vivia esquecendo aquela coisa aonde ia. E, para os mais antigos havia a bengala, hoje considerada terceira perna para velhinhos claudicantes. Havia de todos os tipos, desde os mais simples bastões desnudos até as mais luxuosas, ornadas, algumas a ostentar pedras incrustadas na empunhadura.

– Você lembrou bem, Chiquinha. Chapéu havia para todos os gostos, cores diversas, abas curtas, abas largas. Quanto à bengala, seu uso já entrava em decadência – diz Dolores – Mas, ainda conheci pessoas que a usavam.

E Chiquinha acrescenta:

– Dizia-se que, pelo modo como usava a bengala, detectava-se o grau de educação do homem e se definia sua elegância.

– Imaginem se ainda estivesse em vigor o uso da bengala! – exclama Manelão – qualquer aglomeração poderia dar muito serviço à polícia e aos hospitais.

– Se não tivesse caído em desuso, naturalmente, a lei a teria proibido, assim como armas de fogo e armas brancas. Não tenha dúvida disso – conclui Tatão.

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