Coisas de ontem... e de hoje LXXXVII

19 de Janeiro de 2014
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

– Quanta coisa se transformou, quanta coisa desapareceu, desde nossa infância até o momento! – exclama Chiquinha, acrescentando – tenho saudades das antigas festas de casamento.

Foi a vez de Manelão dar-lhe uma “espinafrada” mediante seu jeito maroto:

– Ora, deixe de frescuras, mulher. Eram festas mais para crianças de que para adultos: doces, doces e mais doces! E para beber? outro doce: o licor. Bebida era licor e tira-gosto, brigadeiro, por exemplo. Era a combinação mais absurda. Aliás, foi numa dessas festas de casamento que tomei meu único pileque na vida. Tinha apenas quatorze anos, quando a mistura de doce com álcool me fez imaginar que morreria naquele dia. Passei muito mal.

Dorinha não perde a oportunidade de azucriná-lo:

– Você não bebe? E o que é que tem no copo?

– Disse que foi meu único pileque até hoje; não disse que não bebo. Pode-se beber sem se embriagar; e é o que faço. Quando percebo que a bebida começa me afetar, paro de beber. Aquele pileque, embora me tenha causado terrível mal-estar, serviu-me como alerta, para não mais me deixar embriagar. Para ser alegre, galhofeiro como sou, não é necessário estar bêbado!

– Taí, Dorinha! Este é o meu Mané! – Chiquinha devolve a cutucada feita ao marido.

Tatão, depois de ouvir as críticas, feitas pelo Manelão, ao costume dos doces nas festas, resolve dar sua explicação:

– Tudo era uma questão de conveniências, de ajustamento às condições de época. Ainda não havia geladeira, equipamento fundamental para a conservação de salgadinhos produzidos com antecedência, como se faz hoje. A cerveja, largamente difundida atualmente, era produto restrito a poucos, nos grandes centros, que podiam tê-la à baixa temperatura. Como já disse, geladeira não havia. O recurso estava nos doces, preferencialmente secos, mais duráveis à temperatura ambiente e de mais fácil manipulação no ato de servir. Quanto à bebida, o licor era a mais fácil de ser fabricada por donas de casa que, disso se ocupavam, semanas antes da festa. E não era somente nessas ocasiões que se servia licor. Por muitos anos, o licor foi bebida chique e elegante com que se obsequiavam visitas em casa. Por isso, a fabricação do licor caseiro figurava entre as habilidades exigidas das candidatas ao casamento. Moças casadoiras não se inseriam entre as consideradas prendadas, se não soubessem fazer pelo menos um tipo de licor.

– O Tatão tem razão – observa Dolores – o licor caseiro tinha lugar de destaque e era fator de promoção da dona de casa em seu círculo social.

– Observe-se ainda – volta Tatão – que licor é bebida para ser servida em doses ínfimas, cerimoniais, e sorvida vagarosamente. É tipicamente social. Não é como outras bebidas, absorvidas em larga escala! O licor não lhe caiu bem, Manelão, talvez, por ter exagerado na dose e devido à sua pouca idade. E ao falar em pouca idade, na atualidade, os anfitriões e seus pais poderiam estar enrascados na Justiça por permitir, a menor de dezoito anos, oportunidade de acesso a bebida alcoólica.

– A questão da dosagem se prova, observando-se os minúsculos cálices dos antigos conjuntos de licoreiras que, devido ao desuso do licor, foram promovidas a peças de decoração, quando não de busca por parte de colecionadores – é Chiquinha que ainda continua – Tais conjuntos costumam ser verdadeiras obras de arte, encontradas em residências de famílias que, de alguma forma, valorizam a cultura.

– Vocês falam na festa, na fabricação do licor – é a Narita – e eu me lembro de episódio triste, dramático, quase tragédia às vésperas de um casamento. Várias pessoas da família estavam envolvidas na fabricação do licor, quando descuido, no manuseio de garrafa com álcool, provocou seu derramamento, parece-me que perto de alguém que acendia um cigarro. A vítima teria morrido ou ficado seriamente queimada se não fosse a presteza com que todos a socorreram. Naquele casamento, não se serviu licor, porque ninguém mais teve ânimo para fazê-lo.

– Sei de caso – manifesta-se o Mário – não aqui, mas em cidade onde residem parentes meus. As consequências foram bem mais dolorosas. Em dia de muito calor e volume de álcool maior, o recipiente explodiu nas proximidades de uma chama. Duas pessoas, diretamente atingidas pelo álcool em chamas, morreram. E não teriam morrido, se as demais estivessem em condições de lhes dar socorro, mas elas também foram atingidas, embora com menor risco de morte.

– Felizmente, são poucos os casos desses acidentes no tempo do licor – fala a Chiquinha – por isso nada impede que se tenha saudade daquelas festas.

– Falou a maior formiga que conheço! – arremata Manelão.

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