Coisas de ontem... e de hoje LXXXVIII

29 de Janeiro de 2014
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Ao ouvir falar de formiga, Dolores dá sinais de ter mais história para contar.

– Uma formiga, isoladamente, não nos faz mal, mas em grande número sob a forma de correção, as consequências podem ser bem desagradáveis. Estamos a falar de doces em festas de casamento e me lembrei de um caso em que formigas mudaram o curso da história.

– Verdade? – indagam quase todos a um só tempo.

– Não aconteceu aqui e a festa não seria de casamento, porém de aniversário, quinze anos de uma garota. Era família de razoáveis posses. O casal tinha a filha aniversariante e mais uma garotinha de alguns meses de idade. Na mesma casa, muito espaçosa, tendo ao fundo grande pomar, residiam os pais da mulher. O aniversário da adolescente, primeira neta do casal de avós que só tinham aquela filha, era ansiosamente aguardado e sua comemoração preparada com muito gosto pelos quatro adultos. À véspera, a casa estava totalmente decorada, doces e licores armazenados na despensa e, no terreiro dos fundos, à moda dos toldos de hoje, grande barraca fora armada. No dia da festa, ao sair do quarto, pela manhã, a mãe das meninas ouviu ruído quase imperceptível, semelhante ao de folhas secas agitadas. Quase ao mesmo tempo, sentiu-se picada nos pés e, ao abrir a primeira janela, teve grande susto com a visão de tudo enegrecido por formigas, aos milhares ou milhões. O barulho ouvido era provocado pela movimentação delas nos enfeites feitos de papel. Ainda não haviam chegado aos quartos, mas o restante da casa estava totalmente tomado. Constatou-se, mais tarde, que praticamente nada sobrara do que comer, guardado na despensa. Contudo, golpe mais pesado caiu sobre a família, quando a mãe correu ao berço para salvar a pequenina do ataque dos insetos. A garotinha jazia inerte, ostentando terrível lesão no pescoço, e, no travesseiro, estava um escorpião, provavelmente levantado de seu esconderijo pela correção de formigas. O desespero tomou conta de todos ante a morte da criança, agravando-se a tragédia com mal súbito da avó, que não suportou ao impacto. O que seria festa converteu-se em velório e sepultamento, enquanto a avó era socorrida no hospital até que, dois dias depois, também ela morreu.

– Cruz, Ave Maria, credo! – exclama Dorinha.

– É tragédia demais, num só tempo e espaço! – emenda Lazinha.

– Programar festa e, em seu lugar, ter morte, é duro demais – acrescenta Narita, seguida por Tatão a tecer considerações em torno dos fatos inesperados.

– E a lida com a morte, se continua desagradável, no passado era bem pior, mormente nessas circunstâncias. A ruptura abrupta da linha de acontecimentos, anulando expectativas prazerosas, era vista por muitos como castigo divino. Tristeza em lugar de alegria e sofrimento em lugar de prazer, contrariando o todo planejado com vistas ao sucesso, eram tidos como compensação pela ousadia egoísta na pretensão de ser feliz. A própria morte, embora a religião sempre ter dito ser passagem, ou transição, na prática era considerada como fim da linha.

– Nem me fale – atravessa Chiquinha – no tempo em que, na maioria das vezes, a agonia se dava no próprio leito do repouso diário, moribundo não tinha o direito de morrer em paz. Era tanto aparato em torno do doente, que a morte mais pareceria festa, se não fosse o choro antecipado de pessoas, que acorriam para os momentos finais.

– O infeliz acabava por morrer antes da hora – diz Manelão, continuando:

– Beatas debulhavam o rosário e, em dado momento, alguém sob pretensão de dar conforto espiritual metia uma vela acesa nas mãos do candidato a defunto. Desconhecendo o que o esperava, no outro lado, o pobre coitado se assustava com o aparato e, com mais medo, acabava por “bater com o rabo na cerca” antes da hora: morria com medo de morrer!

– Sabem do que eu mais tinha medo? – pergunta a Narita, respondendo ela própria – do caixão.

– Mas, isso não me surpreende – ataca Manelão – pois ainda hoje conheço gente que se borra de medo ao ver caixão de defunto, mesmo sem o recheio. Se funerária exibe caixões a transeuntes, ele prefere espichar o trajeto a ter que passar na mesma rua.

– Hoje não mais tenho medo – volta Narita – o que me causava má impressão eram aqueles caixões revestidos com pano roxo ou negro, estampado em amarelo. Aquilo era feio demais! Interessante observação da Chiquinha, apontando a maioria de mortes naturais, no próprio leito, ou seja, em domicílio. Ao contrário de hoje, quando a maioria das mortes naturais se dá em hospital, no passado, pelo menos nesta região, morria-se em casa. Aliás, se nascia e morria em casa.

E Manelão acrescenta:

– Sem se esquecer, que o infeliz morria até de bobeira, por qualquer dor de barriga lá ia ele para a cidade-dos-pés-juntos.

– Uma das causas corriqueiras de morte era o conhecido nó-nas-tripas, a apendicite de hoje! – finaliza Quinzão.

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