Coisas de ontem... e de hoje XCI

04 de Março de 2014
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Dorinha, ao ouvir o que Narita acaba de dizer, interpõe:

– Mas é justamente evitar sofrimento desnecessário que a eutanásia propõe. Se o fim é inevitável, que se abrevie a agonia!

– Evitar mais sofrimento, sim, mas isso pode ser feito sem apressamento da morte – explica Tatão – Se a vida não deve ser prolongada, artificialmente, deixando que ela ocorra no momento certo, mais de acordo com o curso dos fatos, o apressamento da morte é considerado suicídio para o doente terminal, que a pede, e homicídio para quem o atende. Ninguém tem o direito de tirar a vida de quem quer que seja, em momento algum.

– Mas, se é a própria pessoa que não mais quer sofrer e prefere morrer, não vejo razão para não atendê-la. Ela é a dona da própria vida – argumenta Dorinha.

– Será mesmo? Como foi adquirida? Em que momento a pessoa dela tomou posse? – rebate Tatão, completando:

– Ninguém é dono de nada.

– Você diz que ninguém tem o direito de tirar a vida de outrem. Entretanto a própria lei reconhece o caso da legítima defesa. Sob o risco de morrer pelas mãos de outrem, a pessoa pode matar.

– Você faz uma grande confusão, Dorinha. Nem nesses casos há direito de matar; há, sim, o direito de defesa que, em último recurso pode ser mediante morte do agressor. Não existe direito de morte sobre outrem, em nenhuma circunstância. Quanto à defesa, sim, todos têm direito de defender a própria vida e do próximo em perigo.

– E não é a mesma coisa?

– Não, Dorinha. Tanto não é a mesma coisa que o ato de defesa pode se converter em assassinato, num piscar de olhos.

– Não entendi.

– Suponhamos assalto do indivíduo, “zé grandalhão;” armado com faca, contra zé miudinho, de mãos vazias. O “grandalhão” avança sobre o “miudinho”, e este, valendo de sua leveza, salta para o lado agarra estaca de uma cerca e com ela acerta a cabeça do seu agressor, que desaba.

– Cá pra nós, Tatão, essa mais parece história de pescador – brinca Dorinha.

– Eu sei que a cena criada agride um pouco a lógica, mas, antes disso houve Davi e Golias. “Zé grandalhão”, desmaiado no chão e “zé miudinho”, de pé, armado com a estaca, em átimos de segundo, saboreia a vitória sob os olhares de testemunhas. Até aqui, ele agiu em legítima defesa. Mas “zé miudinho” dá segunda e violenta paulada, na cabeça da vítima. O que era defesa vira assassinato. Mesmo que o “zé grandalhão” seja defunto desde a primeira pancada, a segunda converte o “miudinho” em assassino, pela intenção que teve de matar o caído e fora de ação. No momento em que o primeiro agressor fica fora de ação, sem condições de reagir, o segundo deve cessar qualquer ação contra ele, pois do contrário, perde o direito à legítima defesa. Por isso, repito, em nenhuma circunstância existe o direito de morte sobre outrem.

Narita e Quinzão, atentos à exposição do amigo reagem, simultaneamente, como sói acontecer com casais de vida harmoniosa:

– Até parece que você é juiz, advogado ou alguém do ramo!

– Gente, não é preciso ser profissional do Direito para entender isso. O bom senso e a lógica indicam que o perigo, a ameaça sobre mim cessam, no momento em que meu agressor perde condições de agredir. Portanto, necessidade de defesa não mais existe. E digo mais: cessada a necessidade de defesa, surge a necessidade de socorro ao meu agressor. Se o abandono, procedo como o atropelador, que foge sem prestar socorro à vítima.

E Dorinha critica:

– Tatão, você quer ser certinho demais!

– Não se trata de ser certinho ou não. Trata-se de viver com justiça, pelo menos, dentro do meu entendimento.

– Dorinha, o Tatão tem razão – confirma Quinzão, acrescentando:

– Direito de defesa não é direito de matar. Na ação de defesa, se você tem recurso para nocautear o agressor, sem matá-lo, você deve então usar esse recurso, sob pena de carregar um crime nas costas, ainda que consiga escapar da penalidade legal. Lembre-se de que nossa consciência registra, para sempre, nossas culpas, mesmo que à vista do próximo pareçamos inocentes.

– Ainda mantenho opinião de que certos indivíduos não merecem viver – afirma Dorinha.

– Podemos até assim pensar, mas não nos cabe decidir e executar. A vida é sagrada também para ignóbil e bandido egoísta, tanto quanto para o nobre, humano e altruísta – volta Tatão.

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