Coisas de ontem... e de hoje XCIX

29 de Abril de 2014
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

A intervenção de Manelão provoca estrondosa gargalhada do grupo, todos voltados para a Dorinha, que o censurara antes que se completassem seus argumentos.

– Você foi apanhada de jeito – diz Narita, complementada pelo marido, Quinzão:

– É nisso que dá afoiteza na contestação de algo.

– Vocês pensaram a mesma coisa – rebate Dorinha.

– Confesso ter pensado, mas aguardei as explicações – confirma e se explica Tatão.

E a Chiquinha acrescenta:

– A questão das aparências coincidiu com tema de conversa, que tivemos, ontem, o Mané e eu. Falávamos sobre falsidade, no comportamento de pessoas, e me lembrei da figura “sepulcro caiado”, no evangelho, na qual a podridão do corpo sepultado é escondida pela boa aparência do túmulo. Da mesma forma, o íntimo de indivíduo mau caráter é camuflado por verniz superficial; o visto pela sociedade na figura física não tem correspondência em seu interior. Foi então que meu marido observou – “ainda bem que a aparência dos cemitérios é bem cuidada. Já pensou se exibissem a realidade”? A conversa de agora veio a calhar para quem que gosta de polemizar... especialmente, com a Dorinha. Ele já tinha a argumentação na ponta da língua.

– E é a pura verdade! – exclama Dolores, seguida de Tatão:

– Isso nos lembra de que algo condenável, sob determinado ângulo, sob outro pode se mostrar positivo, aceitável e louvável; depende das circunstâncias.

Dorinha volta a se manifestar, dirigindo-se a Tatão:

– E essa relatividade, em sua opinião, envolve posição de pessoas também?

– Não entendi bem sua pergunta.

– Você considera aceitável, em determinadas circunstâncias, a pessoa fingir algo que não é?

– Sim, mas primeiro há que separar situações profissionais, como a do policial em trabalho investigativo, por exemplo. Muitas vezes, tal profissional, não se revela como tal e tem que enganar para conseguir o resultado almejado. A falsa aparência e o engodo são imprescindíveis na realização desse trabalho. Não é o mesmo caso de pessoa que, longe de ser hipócrita na interação com o meio em que vive, se vê na necessidade de dissimular-se com relação a particularidades suas, não para proveito próprio, porém em respeito a terceiros.

– Explique-se melhor, pois não consigo perceber o que você quer dizer – reclama Dorinha.

– Era o que ia fazer, seguida...

Manelão não perde a oportunidade:

– A apressadinha de sempre... não aprendeu na vez anterior. Desculpe-me, Tatão! Prossiga, por favor.

– Suponha-se que tal pessoa tenha convicções próprias, na área das crenças religiosas. Entretanto, sabe ela que, se expostas essas ideias, pode chocar e ofender a maioria do público. Então ela finge acatar o que a maioria acredita. Como já disse, em casos como este, hipoteticamente aqui levantado, não se trata de hipocrisia, porém bom senso e respeito ao direito de outrem.

– E para onde vai o direito à livre expressão? – é a Dorinha novamente.

– Não cabe e nem se pode cobrar esse direito, porque se trata de decisão pessoal, ligada a questão de foro íntimo. Não há pressão externa ou coibição, mas, sim, questão de consciência em torno do direito de outrem, ou seja, de grupo que preserva suas crenças. Ainda que plenamente convicta de seu acerto, pessoa nenhuma tem o direito de implantar a dúvida onde existe a fé, seja ela qual for, indispensável na conduta de muitas vidas. Nenhuma pessoa merece ser abalada em sua crença, fonte de seu sustento espiritual e que dá direção à condução de sua vida. Em sendo questão de foro íntimo, não há impedição de procedimento ao contrário, mas a pessoa deve arcar com as consequências. O que determina é o grau de respeito a outrem, no que tange a questões de cunho pessoal; e esse respeito não é observado por todos, infelizmente.

– Ah! agora, compreendi a situação! – exclama Dorinha – em comparação grosseira, é como eventual segredo a ser preservado, para se evitarem grandes problemas e mesmo tragédias. Se cai no conhecimento de quem não tem discernimento, o mal se solta.

– É, mais ou menos, isso – confirma Tatão – a palavra é importante, mas que se contenha, quando o silêncio se impõe por necessidade premente.

Comments powered by Disqus

Newsletter

Acompanhe-nos

Encontre-nos no Facebook