Coisas de ontem... e de hoje XXI

30 de Julho de 2012
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Chiquinha ouve o comentário maroto do marido e comenta:

– Em assim sendo, restam poucas esperanças de retorno à antiga tranquilidade, quando portas de casas ficavam abertas, sem perigo de qualquer invasão, com exceção de galinhas, que ciscavam por toda a parte; quando a palavra empenhada era cumprida como documento escrito; quem afanava era ladrão mesmo e não autor, quando não suspeito de delito, embora apanhado em flagrante ou confessado o crime. Quando preso ia direto para a cadeia e não dava entrevista como se autoridade fosse. No âmbito coletivo, a solidariedade ensejava costumes considerados estranhos à luz dos de hoje. Um deles era o de, numa emergência, tomar por empréstimo, junto à vizinha, porções de víveres, safando-se a dona de casa de situações delicadas. Na hora de preparar o café, constava-se a falta do café em pó ou do açúcar, ou, na hora de preparar o almoço não havia arroz. Recorria-se à vizinha e esta socorria com a medida do que era necessário. A primeira providência, feito o reabastecimento, era devolver a medida tomada.

– Deve ser por isso que a sabedoria popular afirma ser o vizinho o parente mais próximo.
– Por isso e mais coisas, Larita; na hora da doença, o vizinho é o primeiro a chegar, ainda que com ele não haja relação muito estreita. Manter amizade, não invasiva, com o vizinho é essencial. Há que respeitá-lo, não produzindo, por exemplo, fumaça no quintal, ruídos desnecessários que possam incomodá-lo, não ligar aparelhos sonoros em alto volume. Ao vizinho não interessa a música que você ouve.
– Gente, foram muitas as referências que se perderam ao longo das últimas gerações! – exclama Dolores – E toda essa perda tem relação com queda na qualidade de vida, com a deterioração no relacionamento humano, com mau comportamento de pessoas no espaço público, com a violência e com a quebra da noção dos direitos do cidadão.

Chiquinha volta a falar: – Houve perda até no relacionamento afetivo intrafamiliar. Ainda há pouco, referindo-se ao seu pai, Mário disse “papai”. Já repararam que as novas gerações não mais usam as palavras “papai” e “mamãe” no tratamento direto ou em referências aos seus pais? Em lugar dos termos afetuosos, “papai” e “mamãe” dizem, secamente, “meu pai” e “minha mãe”. Enterraram o conceito de pai e mãe como doadores de vida e amor, substituindo-o pelo de provedores de coisas materiais. Nas expressões “meu pai” e “minha mãe” está implícito o domínio e o direito de cobranças, assim como o patrão sobre o empregado, nas relações mais petulantes. Chiquinha olha para o lado e: – Que tem a dizer, Tatão?
– Olha Chiquinha, eu percebo isso há algum tempo, mas nem cheguei a comentar com ninguém, pois, em autocrítica, cheguei a pensar em implicância puramente pessoal. Entretanto, não faz muito tempo, ouvi queixa de um pai, que se sentia diminuído porque seu filho não o trata como ele próprio tratava o seu pai. Contudo, estou surpreso com a contundência de suas palavras, Chiquinha. São fortes e dão o que pensar! Desculpe-me, por eventual intromissão em questões particulares, mas, há motivo especial?
– Não. E é por não haver motivos pessoais que expresso minhas críticas. Nossos filhos têm comigo e com o Mané a mesma relação de afeto que vivenciamos em nossos respectivos lares. Se fosse o contrário, poderia estar resignada e não estaria a criticar a situação. É porque vejo acontecer em outras famílias e de forma bem imperiosa. Os pais vivem como reféns dos filhos! Eu entendo que tudo começa no afeto de mão dupla entre pais e filhos. Onde o afeto é de mão única, obviamente, de pais para filhos, a coisa desanda.
– Eu entendo o que você quer dizer. E a âncora desse afeto é o tratamento “papai” e “mamãe”. Esses termos abrem as portas para relacionamento mais doce – conclui Tatão.
– Isso mesmo. Veja que em todas as línguas, para os termos formais “pai” e “mãe”, existem termos informais, de uso mais íntimo que, na Língua Portuguesa, são “papá” / “mamã” em Portugal, e “papai” / “mamãe” no Brasil. Penso que só no Brasil, talvez não em todo ele, o saudável costume foi alterado.

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