Coisas de ontem... e de hoje XXIII

11 de Agosto de 2012
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

O relato do Manelão era o que faltava para devolver o ânimo inicial ao grupo. A gargalhada geral chega a chamar a atenção de pessoas em trânsito na rua. Se o caso é engraçado, mais ainda se torna quando contado por Manelão, que se envolve todo no relato, abusando da mímica, caretas, trejeitos e, se lhe convém, até da simulação de um tombo. Ele se aquieta por alguns instantes, enquanto os demais riem, comentam entre si, fazem chacotas, etc. Depois retoma a palavra:

– Agora, o caso é história com final feliz. Por isso todos riem. Mas, aqueles momentos foram de terror para as mulheres. Elas, não entendendo bem o que se passava, vislumbravam o pior, como envenenamento e morte por consequência. Fui tomado de angústia a perturbar meu espírito, não só naquela hora, mas nos dias seguintes, embora soubesse que apenas sal teria alterado o sabor da água. Tatão, então pergunta: – Do grupo de lenheiras, alguma saiu a investigar, verificar o rego d’água?

– Não, nenhuma se lembrou disso. Concentraram-se na atenção à companheira, que chegou a fazer vômito.

– Aí está o erro das pessoas, nessas circunstâncias. Ao invés de imaginar, fantasiar e fazer conjecturas, há que procurar a causa que determina o fato. Só depois disso cabem explicações. Fatos não investigados acabam se tornando lendas. Coisas sentidas e ruídos ouvidos, na escuridão da noite, se não investigados viram casos de assombração. E seu medo, Manelão, tinha sentido, pois a mulher podia ter morrido, se ficasse convencida de que fora envenenada. Sabe-se que médicos, então, se situavam longe, no espaço, e da realidade econômica da maioria.

Manelão continua:

– Eu fiquei apavorado, pois a ideia foi minha e, sozinho, coloquei o saco de sal na água. O amigo, que apenas acompanhara o que fiz, sentia aflição em relação à mulher e preocupação comigo. Não podíamos falar com ninguém sobre o ocorrido. O jeito foi guardar segredo e acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. Pelo que pudemos perceber, por uns três dias, a mulher não quis se alimentar.

– E vocês deixaram o sal na água? – pergunta Tatão, novamente.

– Tão logo as mulheres tomaram o rumo de casa, nós fomos à nascente e demos sumiço no que restara do saco de sal. O feixe de lenha da vítima foi escondido por suas companheiras, para que alguém o apanhasse posteriormente. Concluindo: paguei caro por minha leviandade. Remorso, pela maldade praticada, além de expectativa de possível morte de vítima inocente, foi demais para mim, podem crer! Até que ela se restabeleceu do susto, sofri muito.

– Ainda bem que tudo não passou de susto! – exclama Dorinha. A lenheira superou a fase crítica, que poderia configurar autossugestão, cujo desfecho poderia mesmo ser a morte. E você, Manelão, recuperou a tranquilidade de consciência. Dorinha conclui sua opinião sobre o desfecho do caso, mas continua com a palavra: – Agora, desviando-me um pouco do assunto, eu, que não vivenciei a catação de lenha e pouco alcancei daquela fase, gostaria que me esclarecesse um ponto.

– Qual? – indaga Manelão.

– Sabendo-se que as lenheiras usavam facões, foices e até machados no seu trabalho, isso não gerava conflitos com os donos de terrenos pelo corte de mato?

– Não; elas não abatiam mato verde. Colhiam tão somente lenha seca. É claro que havia exceções, um ou outro caso de novata a fazer isso. Era raridade e imediatamente censurado pelas demais. Elas mesmas não permitiam tal procedimento. As ferramentas eram necessárias, pois havia lenha de espécies diversas, variando entre simples arbustos e grossos e resistentes troncos.

Na sequência das informações prestadas por Manelão, Chiquinha acresce:

– As lenheiras exerciam a atividade com muita responsabilidade, cuidando para não causar danos à propriedade, mesmo porque disso dependia a continuidade do que faziam. Ações predatórias eram repudiadas, e muito cuidado havia com fechamento de porteiras e outros bloqueios usados nas divisas, para evitar que animais se dispersassem. E como o Mané já disse, era necessário que a pessoa fosse dotada do espírito de aventura. Enfrentar mato, às vezes molhado, ao nascer do sol, romper moitas de espinho, capins que cortam como navalha, cipós traiçoeiros que podem levar desavisados à queda, não é tarefa para qualquer um. Lembrem-se que, àquela época, mulheres ainda andavam de vestidos ou saias; nada das calças de hoje. Isso as expunha a mais acidentes, especialmente a picadas de animais peçonhentos, como cobras, por exemplo.

– As lenheiras foram heroínas de uma época! – conclui Larita.

Comments powered by Disqus

Newsletter

Acompanhe-nos

Encontre-nos no Facebook