Coisas de ontem... e de hoje XXIV

16 de Agosto de 2012
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

– Larita, você definiu bem o que representou a lenheira para as comunidades interioranas, antes que o fogão a gás entrasse, definitivamente, na vida das pessoas, mudando hábitos, introduzindo novos conceitos, alterando, enfim, toda a rotina doméstica no tocante ao preparo das refeições. Elas foram verdadeiras heroínas, figuras indispensáveis, de cuja atividade dependiam muitas famílias, além das suas.

Tatão fala com entusiasmo e se emociona ao recordar de sua infância, antes de sua família se mudar para longe dali, por exigências do trabalho do seu pai.

– Vocês sabem; saí daqui ainda garoto, início da adolescência, mas ainda guardo nítida, na memória, a figura da vovó a sair pela manhã, ao mesmo tempo em que eu ia para a escola. Levava debaixo do braço um pano grosso a enrolar algumas cordas. O pano era para fazer a rodilha sobre a qual se assentava o feixe na cabeça. As cordas eram para amarrar a lenha. Pendurado ao ombro ia um bornal com pequena garrafa com água, outra com um pouco de café, frio mesmo. Sobre o ombro, a guisa de espingarda, carregava a foice. Seu regresso com o feixe na cabeça dava-se, ora antes de eu chegar da escola, ora um pouco depois. Vivia constantemente com grandes arranhões, nos braços, causados por sua movimentação à procura da lenha seca em ambiente hostil, como era o cinturão verde que circundava a localidade. Eu era seu primeiro neto e, por isso, dedicava muita atenção a mim, contemplando-me com muitos agrados, entre os quais, frutas silvestres, catadas por ela, durante sua jornada, no mato.

– Oh! Tatão, quanta saudade da gabiroba! – exclama Dolores, enquanto Dorinha pergunta: – e que frutas eram essas?

– Além da gabiroba, lembrada pela Dolores, tínhamos o araçá, o araticum, a maria preta, morango do mato, amora do mato, ingá e outras que nem me lembro. Mas a que eu mais apreciava era a marmelada de cachorro.

– Marmelada de cachorro? – indaga Dorinha, acrescentando: – Mas que nome mais besta!

– Não me pergunte a origem do nome porque também eu não sei. Só digo que eu gostava muito e a vovó m’as trazia, no seu devido tempo de colheita. A marmelada de cachorro tinha forma esférica, como a jabuticaba, também se igualando a esta no tamanho médio. Era produzida por arbusto pouco maior que uma pessoa, se tanto. Madura, ela tomava coloração escura, quase preta, e se mostrava macia ao ser apalpada. Sua parte comestível era apenas a interna; massa cremosa e amarronzada na qual se misturavam pequenas sementes.

Manelão se mantinha atento à dissertação do Tatão. No entanto, não conseguia disfarçar sua intenção de intervir com algumas das suas... percebia-se por seu sorriso maroto e cochichos ao ouvido da Chiquinha, que correspondia com risinhos intrigantes. No momento em que Tatão fez pausa, ele entrou:

– Você, Dolores, lembrou-se mesmo foi da gabiroba, ou do que sua procura, no campo, proporcionava?

– Ora, que pergunta mais boba! Que outro interesse, além da fruta?

Aí foi a vez da Chiquinha:

– Não se faça de sonsa, pois todo mundo aqui sabe a que o Mané se refere. Quem viveu a juventude àquela época sabe – A risada geral desarmou a Dolores, que aderiu à pândega.

– Eu me referia à fruta, mas não há como negar a oportunidade de outros prazeres daqueles passeios no campo. Tinha de ser mesmo da Chiquinha e seu marido a lembrança daquelas pequenas estripulias.

– Pequenas para nós, as felizardas daquela época, e aos olhos da moral de hoje, porque se nossos pais descobrissem que havíamos trocado beijos com namorados, podia-se ter certeza de a cinta entrar em ação.

– Você tem razão – concorda Dolores – eu disse pequenas, pensando à luz da moral de hoje.

Chiquinha continua:

– Contudo, eram tardes inesquecíveis à temperatura de verão, o sol quase se pondo. Grupos buliçosos de adultos, jovens e crianças invadiam os campos de gabiroba, enquanto aves se lançavam ao ar, a fugir dos intrusos, que lhes tiravam o sossego e o prazer de bicar a mesma fruta. Jovens casais de namorados, não mais que dois ou três, convenientemente aderidos ao grupo, ficavam atentos a qualquer distração dos demais, especialmente crianças “olheiras”, para se isolar e, nesses momentos, sugar-se com beijos. Eram momentos rápidos, perigosos se testemunhados, porém bem aproveitados pelos apaixonados.

– E quem diria que um dia comentaríamos o assunto de forma tão despreocupada à mesa de bar? – indaga o Mário – Que diz Manelão?

– Digo que já fui “bão” nisso!

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