Coisas de ontem... e de hoje XXVIII

12 de Setembro de 2012
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Por algum tempo prevalecem pilhérias em torno do casal Manelão/Chiquinha, mesmo porque os dois alimentam o tema com mais brincadeiras. Embora, no grupo, haja outro casal, formado por Quinzão e Narita, o primeiro motiva mais alegria. E é Narita que se manifesta, depois de muito se divertir com a história contada pelo Manelão:

– Foi também numa festa religiosa que meu marido e eu nos conhecemos; por isso, também nós guardamos gratas recordações das antigas festas, então realizadas com muito gosto e das quais, praticamente, toda a comunidade participava, de uma forma ou de outra. Eram o orgulho da comunidade e aguardadas com muita ansiedade!

– É pena que tudo tenha ficado no passado, nada restando para a geração atual – acrescenta o marido.

– Como disse no início – continua Narita – eram as ocasiões mais propícias para se formarem pares de namorados, candidatos a marido e mulher, como no nosso caso. Mas, não era só isso. A festa transcendia o sentido religioso em aspectos diversos.

– Ela movimentava a economia local – explica Quinzão – papai, por exemplo, tinha uma sapataria; não como as de hoje, loja de comercialização de calçados, mas oficina de consertos. Ele não ficava sem trabalho, mas por ocasião das festas, a oficina ficava abarrotada e ele chegava a recusar encomenda.

– Você se esquece de um detalhe – atravessa o Mário – as oficinas não eram só de consertos. Digo isso, porque o meu pai também era sapateiro e fabricava, como os demais, muito calçado sob medida.

– Você lembrou bem, Mário. O freguês ainda escolhia o modelo e o material, que variava entre o couro comum e as peles mais finas e macias. Por algum tempo, os preferidos foram os de bico fino, que se destacavam nos pés dos rapazes mais ousados. Quanto mais fino o bico do sapato, mais seu dono era notado na festa. E muitas eram as oficinas, pois a clientela extrapolava os limites locais, alcançando toda a região. Não faltava trabalho para nenhum desses profissionais, que ainda cuidavam da continuidade do ofício, tendo sob sua responsabilidade o ensino a jovens adolescentes, que assim se garantiam para prover seu próprio sustento.

Dorinha ouve com atenção a exposição e faz a observação:

– Você diz, Quinzão, que as oficinas de calçados eram várias e que trabalho não faltava a nenhum desses profissionais. Eu não alcancei essa época, mas sempre ouço dizer que muitas pessoas, então, andavam descalças. Creio que há incoerência nisso: se tanta gente andava descalça, como podia haver mercado para a produção alegada?

– Não há incoerência alguma. De fato, grande parte da população andava descalça, ou só calçava em ocasiões especiais. A verdade é que se todos calçassem, como hoje, as oficinas então existentes, seriam insuficientes para atender a demanda.

– Crianças, por exemplo – emenda o Mário – passavam a maior parte do tempo de pés no chão. Também a população, genuinamente rural, só usava sapatos em ocasiões especiais. Você se lembra, Manelão?

– Era isso mesmo. Quando criança, nem pra ir à escola, eu calçava. Sapato, assim como a roupinha melhor era “de ver Deus”; usava-se nas missas aos domingos ou, como lembramos há pouco, nas festas religiosas. O pessoal das “ristingas” tinha costume curioso. Quando se deslocava para o centro urbano, vinha descalço até as proximidades, onde havia água, lavava os pés e, somente então, calçava. Na volta, tiravam-se os sapatos, e o percurso era feito de pés no chão novamente. E isso não era somente questão de economia ou conservação do calçado, como podem alguns pensar. Acostumadas à lida na roça, onde viviam descalças, essas pessoas viam o calçado como um suplício, necessário em certas ocasiões, de acordo com as convenções sociais.

Dorinha, com riso incontido, indaga:

– “Ristingas”? Que é ou o que era isso?

– Ora, Dorinha, todo mundo aqui sabe, por que você não? – reclama Manelão, que é cortado pela Chiquinha.

– Você se esquece, Mané, que ela é a caçulinha do grupo? Nem tudo ela viu da nossa época – e se virando para a Dorinha explica:

– “Ristingas” era como alguns denominavam pequenos povoados, a roça, ou zona rural.

– No fundo, era termo preconceituoso, para discriminar pessoas do campo, não é mesmo? – zomba Dorinha – mas, tudo bem, porque essas diferenças, praticamente, não mais existem.

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