Covardia

07 de Fevereiro de 2011
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Embora fosse madrugada, o ar estava sufocante, em decorrência do forte calor imperante no último janeiro, céu praticamente sem nuvens, em contraste com outras regiões onde chuvas torrenciais e contínuas causavam destruição e mortes. A completar o quadro angustiante, para os que pouco sono têm, uivos e latidos quebravam o silêncio.

Da janela podiam ser vistas quase duas dezenas de cães, de diversos tipos e tamanhos, em sobe e desce pela rua, naturalmente, a perseguir uma fêmea no cio. Tão grande quantidade de cães abandonados nas ruas, em pouco tempo, leva à constatação de que a “carrocinha” municipal está a enxugar gelo. Recolhem-se os animais e, poucos dias depois, as ruas estão cheias deles. Pelo aspecto dos animais, bem nutridos e aparentemente saudáveis, percebe-se que o abandono é recente. Não somente doença motiva o dono ao abandono do cão. Parece que é simples desprezo pela vida! O cão é considerado o melhor amigo do ser humano, mas o que prende este àquele não é afeto (com exceções, é claro), mas a característica submissão canina. Pode ser agredido e enxotado pelo dono, mas ao ouvir o estalar dos dedos do mesmo, ele volta, tranquilo a abanar a cauda. O bicho homem é dominador, enaltece a submissão de seu semelhante e vê no cão a qualidade nem sempre vista nos da sua espécie. Quando o cão não responde a esse interesse, é abandonado, ainda que livre de doenças.

Mas, há também o contrário e, coincidentemente, enquanto redigia estas linhas, chegou-me jornal com matéria a retratar trabalho de psicólogos junto a casas de abrigo a idosos. Cães abandonados são adotados, treinados e levados em visita aos idosos que, muitas vezes, são também abandonados pela família. Estabelece-se, então uma interação proveitosa ao idoso e ao cão. O cão quebra a solidão em que vive o idoso, e recebe deste o afeto compensatório pelo período em que viveu abandonado.

Ao longo do dia, vários deles são vistos a cheirar pessoas e olhar insistentemente à sua volta, como se à procura do dono. Outros são vistos, em posto de gasolina, a rondar a cabina de cada caminhão, que para em busca de abastecimento. Guardam na memória que aqui chegaram, transportados de algum lugar em veículo. É improvável que tantos cães vadios sejam descartados por pessoas locais, deduzindo-se facilmente que são “deportados” de outros pontos de origem. E isso ainda não se provou porque, de longe e na escuridão da noite, ainda não foi possível anotar a placa de caminhão, visto algumas vezes, a descartar matilhas nas ruas de Cachoeira do Campo.

O ladrar dos cães faz lembrar o tempo em que eles eram muitos, e se sabia disso porque eram ouvidos de longe, pois presos estavam nos quintais. Um ou outro, quando saía, era para acompanhar o dono. E se houvesse cães na rua, como hoje, por certo que certos costumes não teriam prosperado. A carne, por exemplo, adquirida nas vendas (não havia açougues) onde se comprava com caderneta, para pagamento no fim do mês, o consumidor levava pendurada por pedaço de embira trespassado no pedaço mais firme da peça comprada. Imagine-se a carregar carne dessa maneira com dez a vinte cães famintos em volta de si. Na embrulhada que se formaria, até o consumidor viraria comida de cachorro!

Havia animais nas ruas, sim, e muitos: galinhas, cavalos e burros. Cães nas ruas àquela época seria alto risco para a vida das penosas, engordadas livremente e destinadas a virar ensopado para as mamães, no resguardo observado depois do parto. E se não fossem aqueles animais, ajudados por moradores mais zelosos, a desbastar os extensos gramados e parte do mato que crescia ao longo das ruas, Cachoeira seria sufocada pelo mato, pois a roçada feita pela prefeitura era bienal, às vésperas das solenidades da Semana Santa, também realizadas de dois em dois anos, devido aos altos custos. Na parte mais alta da Rua Santo Antônio, chegava a se produzir lenha!

Quanto aos cães deportados na calada da noite... ah! se fosse possível dar o mesmo tratamento aos (i)responsáveis pela covardia! Em baú fechado, eles seriam levados de olhos vendados e largados só com a roupa do corpo, em local deserto, bem distante. Ao mesmo tempo em que tentariam identificar o local do exílio, a batalha pela comida seria a atividade prioritária, mesmas preocupações dos animais ao se descobrirem em local estranho e abandonados.

Comments powered by Disqus

Newsletter

Acompanhe-nos

Encontre-nos no Facebook