Falso tesouro

03 de Fevereiro de 2017
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

O Homem (espécie) é um ser social e, como tal, tem necessidade de convivência em grupos, em contato permanente com indivíduos, seus semelhantes. Dentro desse princípio, quase sempre ele nasce em família, primeiro grupo de que participa, compulsoriamente, diga-se de passagem, e, a partir deste ingressa em outros, voltados aos estudos, ao trabalho, à religião, à cultura, ao esporte e, entre estes e outros, ele pode formar seu próprio grupo familiar, em continuidade ao de sua origem.

Além da convivência em grupos, cada indivíduo tem necessidade de ter em outros, uma espécie de reflexo daquilo que ele próprio é, caracterizando-se, então, o vínculo denominado amizade. No relacionamento dentro dos vários grupos, ele então satisfaz a necessidade inerente à vida de cada indivíduo, que é ser amigo e sentir-se amigo por outrem. Contudo, a amizade não é algo encontrável em todos que o rodeiam, o mesmo se dando de si próprio em relação a outros indivíduos, razão pela qual nem sempre prospera o vínculo com determinado grupo. E mesmo entre os considerados amigos, o reflexo obtido pode ser tão falso e por tanto tempo, a ponto de a vítima ter sua meta, em vida, desviada. Por essa razão o cultivo de uma amizade é mistério para a primeira pessoa, que não pode se garantir quanto ao que passa pela mente da segunda. Esse é o maior risco, porque pode ser que o grau de dissimulação da outra parte seja tão alto que não deixe a perceber a falsidade.

Com seu jeito próprio de ser, seu pensamento, suas dores e alegrias, o indivíduo atrai à volta de si semelhante dentro da espécie, supostamente também semelhante quanto ao caráter, em razão do que passa a lhe dedicar atenção e consideração especiais, que solidificam uma amizade. Dentro desse clima, compartilha com a outra parte o que lhe vai na alma, confia-lhe segredos, recomenda-o a outros ditos semelhantes; em seu íntimo, transforma-o em ícone de segurança, ainda que simbólico, para indesejáveis eventualidades no futuro. Enfim, o indivíduo considerado amigo, de acordo com o grau da amizade, é transformado pelo primeiro em quase extensão de si próprio. No íntimo do ser, ele cria uma arca onde passa a guardar os momentos compartilhados, as conversas, as experiências, tal qual tesouro material que se acumula em velho baú, por anos a fio.

Quanto a este último, se depois de algum tempo, descobre-se enganado, falso e inútil todo o material guardado como tesouro, o possuidor, a depender de seu grau de apego a posses, pode desiquilibrar-se emocionalmente e se resvalar para a ruína moral. Nem percebe que, possivelmente, ainda lhe resta a chance de, novamente, fazer fortuna, eliminando-se os erros anteriormente cometidos. Pode não ser tão fácil, mas a perda material fica só no material, desde que seu possuidor se considere acima da perda. Ao descobrir-se continuamente traído por quem se dizia amigo, também se abre a arca da imaginação para mostrar seu conteúdo, que não passa de mentiras acumuladas como se fossem gestos de amizade, de lealdade e de solidariedade. Cada uma dessas lembranças, guardadas na memória, representa tempo e disposição desperdiçados, que nunca serão recuperados, mas ali ficarão gravados para mostrar que a amizade, se verdadeira é um tesouro, mas se falsa pode formar um turbilhão na vida da pessoa traída, a depender de seu perfil psicológico!

Que não se confunda amizade, subitamente, rompida no rastro de único e eventual conflito de interesses com a amizade fingida, hipócrita e contínua ao longo do tempo. No primeiro caso pode haver reversão, no segundo, não. Também ao contrário do falso tesouro, a falsa amizade é irrecuperável, para sempre e de efeito progressivo, sabendo-se que o(a) falso(a) amigo(a), a depender do grau de seu mau-caratismo, pode persistir na ação deletéria por toda a vida. É como mina de guerra que, mesmo após cessação do conflito, continua a fazer estragos e produzir vítimas, pois causar destruição é parte de sua natureza; triste realidade, frequentemente lembrada por notícias de mortes e sérias mutilações, que continuam a acontecer em antigas zonas de guerra, vinte ou trinta anos após as hostilidades bélicas.

Cabe à vítima da falsa amizade ser forte, não se deixar abater pelo choque da descoberta e nem pelas sequelas porque, afinal de contas, é isso que a outra parte, em seu íntimo tormentoso, deseja. Há que se manter alerta contra possíveis ações maliciosas nos círculos sociais, porém confiante em si próprio, sempre a lembrar que, estando a vítima livre de culpa em relação à outra parte, quem plantou deve colher.

De diversas maneiras e circunstâncias, ao longo da existência, troca-se energia com o semelhante, numa interação que constrói, que alimenta a vida. Isso só não se realiza no caso da falsa amizade, havendo, sim, desperdício, uma vez que não há contrapartida.

Constata-se, então, que sendo a vida uma escola contínua, dela muitas vezes se obtém a face da verdade, no crepúsculo, depois de enganada, na juventude, pela mentira.

Comments powered by Disqus

Newsletter

Acompanhe-nos

Encontre-nos no Facebook