Flagelado hoje, estorvo amanhã!

24 de Janeiro de 2011
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Com antecedência ainda não se pode dizer onde e quando, precisamente, uma vez que possibilidades fortes se espalham por todo o país, de dezembro a fevereiro, período de fortes chuvas, grande movimentação de pessoas em férias; tudo temperado com alto grau de irresponsabilidade tupiniquim, do Zé Mané ao “granfinóide”, setor privado e público. No tempo e espaço ficam as dúvidas, mas certeza quanto a ocorrência de tragédias e dramas humanos pode-se dizer que há, todos os anos, em alto grau de comoção pública; só que neste ano o que ocorreu, ocorre e deixará sequelas por muito tempo, superou tudo. Catástrofes cinematográficas produzidas pela imaginação foram, de longe, batidas pela realidade nua e cruel, que não discriminou classe social, atingindo a todos indistintamente em diversos municípios serranos do estado do Rio. Falam em desastre natural, mas na natureza não há desastre. Tudo que aí ocorre está de acordo com suas próprias leis. Na natureza, tudo é normal. Se a região não fosse habitada, ninguém falaria em desastre, tendo como causa volume de chuvas acima da média. O fato seria relatado sem alardes e poderia ser motivo de discussão, apenas em círculos de estudos de fenômenos atmosféricos, climatológicos e geológicos. Desastre dessa ordem existe quando o ser humano é vítima de sua própria incúria ao se opor à natureza, cujas manifestações são livres, muito mais do que aspira o homem, quando pensa em liberdade para si. Então o desastre não é natural e sim provocado pela ação humana, ainda que inconscientemente.

Pode-se imaginar a angústia, o grau de desespero das pessoas diante das perdas, não poucas, em vidas e patrimônio, dentro de seu ambiente devastado como se alvo de ação bélica. Muitos, mais infelizes ainda, perderam também o emprego junto com a empresa que lhes dava sustento por meio do trabalho. Famílias inteiras desapareceram. Nem todos os corpos serão resgatados. A geografia das localidades atingidas foi mudada e, na vida das pessoas que ainda vivem o drama, nada será o mesmo daqui para frente.

Mas por que tudo isso aconteceu e acontece com certa frequência, no Brasil, nas estações chuvosas? Por razões, que variam desde a pobreza impeditiva na escolha de melhor local até a riqueza licenciosa, mediante o jeitinho brasileiro e cumplicidade de (i)responsáveis, imóveis são edificados, clandestinamente ou com aprovação oficial, de qualquer modo e em qualquer lugar. São edificados à beira de cursos d’água, na rota de boqueirões naturais por onde escoam enxurradas vindas das montanhas, nas encostas destas, sobre esplanadas resultantes de aterro não consolidado, e sob muitas outras condições desfavoráveis à segurança. Contribui para isso a cultura nacional da esperteza, a tendência para violar normas e regulamentos sob a omissão da administração pública, que não fiscaliza, e o olho gordo político que precisa dos votos e não quer confronto com irregulares.

A coroar todo o processo insano de desafio à natureza está a falta de uma política nacional, que contemple a fixação da população interiorana, dando-lhe oportunidades de trabalho na localidade de origem e melhores condições de vida; falta de uma política nacional de prevenção de tragédias provocadas por intempéries; falta de controle rígido sobre áreas de risco, delimitando-as e impedindo que sejam ocupadas; falta de educação da população em defesa civil. Até aqui, tanto governo quanto a sociedade têm chorado sobre o sangue derramado e mitigado dor e perda entre sobreviventes com paliativos, por meio de campanhas populares, cujo produto, em parte, não escapa das ações de corruptos. Nessas ocasiões de tragédia e comoção coletiva, legiões de pessoas se veem tolhidas na ação de conduzir suas vidas e prover seu próprio sustento, constrangidas sob o amparo de terceiros que, de boa vontade acorrem de pontos diversos e no momento necessário. Os sobreviventes sofrem pela perda de familiares e amigos, pela perda do seu patrimônio e referências na comunidade, pela quebra em sua autoestima e pelas incertezas de volta ao padrão de vida anterior.

Mas, o mais doloroso ainda não é o agora, será o depois, quando todo o esquema de ajuda e socorro tiver sido desmontado e as vítimas tiverem que retomar o curso “normal” de suas vidas. Haverá momento em que cessarão atenção e amparo, bem ou mal, dirigidos a todas as vítimas da tragédia. No plano coletivo, começará pela frustração ante o não cumprimento de promessas oficiais, pois muito do dito não se formaliza em documento e a maior parte do documentado não chega à execução. Verbas são aprovadas, mas não liberadas; e, quando liberadas, sua maior parte se perde nos meios ou é desviada para outros fins. Cada cidadão terá sua cota amarga, na batalha para fazer valer seus direitos, ao sentir na pele a indiferença da burocracia e má vontade de pessoas responsáveis por ela. Pessoas se apiedam nos primeiros momentos da tragédia se transformam em algozes, mais tarde; documentos são “desaparecidos”; manipulações e testemunhos “convincentes” fazem parte do esquema e, lá um belo dia, a antiga vítima se descobre na condição de estorvo, do qual todos querem se livrar.

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