O sino em silêncio

07 de Julho de 2016
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Tem rádio, tem jornal, tem outros informativos impressos e, sobretudo, tem uma rede de boatos, mentiras, intrigas e fofocas capaz de derrubar, em pouco tempo, a imagem de quem lutou por ela durante toda a vida, até o momento em foco, mas a comunidade cachoeirense ressente-se da falta do seu mais primitivo meio de comunicação. Não exclusivo desta comunidade, porque praticamente todas as demais o possuem, destaque-se sua importância desde os primórdios da civilização nesta região.

Depois de tanto tempo de atividades, agora descansa; calou-se o sino principal da igreja-matriz, deixando a todos, já acostumados com seu som, a sensação de vazio e ausência. Pontual em momentos certos e também incertos, estes os mais sentidos, porque, faltando, deixa seus ouvintes à parte dos momentos finais de alguém neste mundo, o sino deixou de soar porque padece de defeito em seu mecanismo, assim como qualquer máquina depois de muito trabalhar; e muito ele já trabalhou. Se considerar que as torres foram construídas em 1792, cerca de quarenta ou cinquenta anos depois de edificada a igreja, conclui-se que o sino tem pelo menos duzentos e vinte e quatro anos.

O sino já era usado pelos povos antigos, porém em tamanho reduzido, algo como a conhecida sineta de hoje. Em volume maior para ser alçado ao cimo da torre, ele ficou conhecido a partir do século V por iniciativa de mosteiros. A Igreja Católica reconhecendo nele o excelente meio de sinalizar à coletividade as suas atividades paroquiais, adotou-o, tornando-o elemento inseparável dos seus templos, desde suntuosas catedrais, nos grandes centros, até a mais simples ermida, na paisagem rural. Como não podia deixar de ser, colonizadores portugueses trouxeram-no para o Brasil, colocando-o na torre de cada igreja, nas cidades e povoados, cujas populações passaram a ter nele o pulsar coletivo, regendo as atividades religiosas. Entre esses trazidos pelos portugueses, está o velho sino de Nossa Senhora de Nazaré ao qual, infelizmente, pelo que se sabe, não foi dado nome próprio como aconteceu com os do distrito sede, embora poucos da comunidade ouro-pretana disso saibam.

Em toda parte, incluindo-se Cachoeira do Campo, o sino não ficou só nas funções religiosas, que incluía a Hora do Ângelus, em três momentos do dia (às 6h00, 12h00 e 18h00) marcados com pancadas isoladas e bem compassadas, lembrando aos católicos a hora de saudar Maria, a mãe de Jesus.

Assim como nos momentos de tristeza, para anunciar a morte de alguém ou acompanha-lo à sepultura, o sino pode alertar a comunidade sobre tragédias como incêndios, tempestades e enchentes. Aqui não fugiu à regra. Não que tenha ouvido, mas em 1949, por ocasião de grande enchente ocorrida na madrugada, falou-se que o sino cachoeirense teria sido acionado para despertar a população, especialmente, a pedir socorro às vítimas em aflição. Se não em 1949, por ocasião da enchente, ouvi-o a bimbalhar em regozijo coletivo pelo término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, enquanto o povo desfilava, ruidosamente, a comemorar. Enfim, independente da crença ou da não crença de cada um, o sino sempre fez parte da vida cachoeirense. Como já dito, ele deve ter mais de duzentos anos de serviços prestados à comunidade, desconhecendo-se qualquer inatividade de natureza técnica. Observe-se ainda que o único dia em que não deve ser tocado é a sexta-feira da Paixão.

Não se estranha, portanto, que seu mecanismo tenha se desgastado e necessite de intervenção profissional. Estranha-se, sim, o fato de a constatação ter sido feita depois das obras de restauração promovidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Como equipamento integrado ao monumento, deveria ter sido periciado por técnicos daquele órgão, ou a seu serviço, mas ao que parece isso não foi feito. Em lugar dessa perícia, o IPHAN preferiu implicar com o coreto que, segundo sua avaliação deveria ser derrubado ou trocado de lugar, deixando de considerar que ele não interfere na visão que o observador tem da igreja; pelo contrário, compõe com ela, igreja, cena que bem representa a cultura do interior mineiro.

Por isso o coreto merece também ser preservado. Mas o IPHAN só vê as obras em sua dimensão nacional, esquecendo-se da relação de cada uma com a cultural regional e local, tendo como meio o sentimento de amor e orgulho da população que as cerca.

O velho sino se calou. Por não ter voz ativa a seu favor, e a população também não, como presa que é da vontade do IPHAN, só Deus sabe quando ele poderá ser ouvido novamente! Sua falta é mais sentida, quando não se ouve seu som por ocasião da partida daqueles que passam a fazer falta.

Ao fim dessas considerações, vem à lembrança a voz da amiga que, ao ouvir o dobre do sino, perguntava pelo telefone: “por quem o sino dobra?”. Lá um dia, o sino dobrou, mas ela não perguntou; era por ela mesma, que partira.

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