Reminiscências do Dom Bosco IX (final)

14 de Julho de 2011
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Para encerrar esta série falo um pouco de figura, citada de passagem em textos anteriores que, em meu tempo, se destacava de várias formas no corpo docente do Colégio Dom Bosco. Escolho o padre José Tavares Baêta Neves, ou simplesmente Padre Baêta, como era conhecido, em razão de comentário injusto endereçado a todos aqueles educadores, dos quais o padre figurou como exemplo pela língua maldosa de pessoa desconhecida, ao meu lado, dentro de ônibus.

O padre Baêta caminhava à margem da rodovia, nas proximidades do colégio, como costumava fazer depois do almoço. Ao vê-lo, o desconhecido com ar arrogante comentou: “lá vai um vagabundo, que só sabe comer e dormir”.

Aquelas palavras me causaram repulsa e imediata reação, pois eu era uma das muitas testemunhas do quanto todos trabalhavam no “Dom Bosco”, especialmente, o Padre Baêta. Baixinho e gordo, o Padre Baêta era reconhecido de longe, até mesmo pelo modo de andar, ligeiro e a passos miúdos. Rosto redondo e moreno, ostentando olhos miúdos e irrequietos, queixo confundido com farta papada a se dobrar sobre o colarinho clerical, o Padre Baêta era dessas pessoas, que gostam de conversar, sobretudo, sobre assuntos polêmicos. E, quando criticava, o fazia de forma contundente, não perdoando nem mesmo seus colegas de batina naquela casa. Seu tema preferido nas conversas era a política. Getulista ferrenho, era capaz de discorrer por horas sobre Getúlio Vargas e seu ideal trabalhista. Lembro-me bem de como se abalou, na manhã de 24 de agosto de 1954, quando o Repórter Esso (transmitido por alto-falante ao pátio) anunciou o suicídio do presidente.

Preferia ficar mais à parte, não se atrelando aos colegas, exceção feita nos atos religiosos e comemorações importantes da congregação e do próprio estabelecimento. Durante o recreio, quando não passeava pelas alamedas frutíferas, a rezar o breviário, Padre Baêta preferia se juntar aos funcionários e alunos semi-internos. Era professor de Francês – língua que falava fluentemente – da segunda à quarta série e também de História Geral da quarta série. Para Francês, o aluno era obrigado a ter quatro cadernos: dois para ditados e dois para exercícios de gramática, de modo que o aluno sempre tinha dois em seu poder, e ele os outros dois. A sobraçar pilha de cadernos corrigidos, vários livros de gramática e o inseparável espanador debaixo do braço, ele entrava na sala de aula como se estivesse a caminho de apagar incêndio: rápido e agitado. Com o espanador, espalhava a poeira de giz de sobre a cátedra e iniciava a aula: “dictée... dictée... dictée” (ditado... ditado... ditado) “rápido... rápido... rápido”.

O aluno tinha que ter o caderno aberto na página, caneta em punho e ouvidos abertos, cuidando de fechada estar a boca. “Se alguém falar ou tentar colar, eu meto os ferros!” “Prestem atenção, pois não repito!” Ao fim do ditado, devolvia os cadernos do mesmo gênero, em seu poder, devidamente corrigidos, e conduzia exercício de leitura, seguido de lição sobre gramática. Ao fim, devolvia os cadernos de exercícios, comentava sobre erros mais comuns e passava mais trabalho a ser entregue na aula seguinte, quando o mesmo roteiro se repetiria.

Mas, suas atividades, ao contrário das dos demais professores, iam além da sala de aula, pois, àquela época, era pároco em Glaura e em São Bartolomeu. Em razão disso, era muito procurado por seus paroquianos, para encaminhamento de processos de casamento, estabelecimento de datas para batismo e outros procedimentos na vida paroquial. Para auxiliá-lo no trabalho, escolhia um aluno da quarta série, que concordasse em sacrificar algumas horas ao fim das aulas. O aluno ajudava na correção dos trabalhos escolares, incluindo-se provas, e também em tarefas pertinentes às paróquias. Tive o privilégio de ser o escolhido, quando cursava a quarta série, e pude aprender muito mais com ele, pois, enquanto corrigia, ensinava-me. Quando o meu caderno ou folha de prova caía em minhas mãos, eu repassava a ele, para que corrigisse, ao que ele observava: “você mesmo corrige e atribui a nota que merece; sei que não sairá dos limites”. Entre as tarefas paroquiais, chamava-me a atenção os processos de casamento. Por serem comunidades pequenas, antigas e, relativamente, isoladas, havia muita união consanguínea. Esse tipo de casamento demandava licença especial da Cúria de Mariana, razão pela qual aprendi a redigir petição específica e a desenhar árvores genealógicas dos noivos, para demonstrar o grau de parentesco entre eles.

A amabilidade e boa vontade, com que atendia seus paroquianos, rendiam-lhe pacotes de queijo e doces daquelas comunidades, sobressaindo-se as imensas barras de goiabada cascão, legítima; não essa goiabada ordinária, à qual se adicionam cascas de goiaba, a ser vendida como “cascão”! E essa gentileza ele dividia com seu auxiliar! Era o Padre Baêta, apontado como vagabundo!

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