Reminiscências do Dom Bosco VII

30 de Junho de 2011
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Como já foi dito, o Colégio Dom Bosco possuía, nos pastos, grande rebanho bovino do qual provinha a carne servida diariamente em todos os refeitórios, alternada uma ou duas vezes semanais com carne suína, também de sua criação. Quando em forma de bife, de tamanho razoável, já vinha servida nos pratos e não havia repetição. Preparada de outra forma, podia-se pedir mais porções à cozinha por intermédio dos copeiros, ou os chefes de mesa (sentados às cabeceiras) providenciavam em outras mesas, onde ela sobrava; não somente carne mas qualquer outro prato.

E em se tratando de carne, lembro-me de episódio curioso, acontecido em 1958, meu último ano na casa. Surgido na Zona da Mata mineira, boato espalhou que a carne bovina estaria a afetar a masculinidade. O bichou pegou feio para açougues e açougueiros, pois, de repente, ninguém queria saber de carne de boi (ou de vaca). O medo de perder a capacidade inerente à masculinidade pôs os homens em polvorosa. E o alvoroço não foi menor entre as mulheres!Assim como no mercado, dentro do Colégio Dom Bosco, o boato fez o mesmo estrago: a carne passou a ser refugada em todas as mesas, exceto na dos semi-internos. O grupo de Cachoeira continuou a comer da carne, sem nenhum temor, diante dos olhos arregalados dos internos. Aos que nos questionaram o comportamento, explicamos que o boato se referia ao rebanho da Zona da Mata. Se fosse verdade, estaria afeto tão somente ao gado daquela região. Acrescentamos que, em casa, nós também passamos a comer sem carne, pois não se conhecia sua procedência; mas, no “Dom Bosco”, a carne vinha de animal criado em seus próprios pastos. Diante dessa explicação, alguns menos temerosos, ou mais gulosos, voltaram a comer, e, aos poucos, os demais, também.

A crise se encerrou quando o mistério se revelou. Tudo não teria passado de “briga” entre marchantes e criadores de gado para corte. Segundo o que se dizia, à época, marchante espalhou que determinado rebanho estaria contaminado por produto que afetaria os homens. Crendo, ou não, na história, o assunto era grave demais para ser posto de lado. Por via das dúvidas, melhor sacrificar o prazer da carne à mesa do que na cama! No ano seguinte (1959), o episódio foi amplamente debochado no carnaval. Em todos os bailes carnavalescos, a marchinha mais tocada e cantada era o “Boi da Cara Preta”. Sua letra dizia: “Olha o boi da cara preta... olha o boi da cara preta... olha o boi da cara preta... olha o boi da cara preta! Coitado do Waldemar! Tá dando o que falar; comeu carne de boi, falou fino! E deu para pra se rebolar; que azar!”

De vez em quando, ao entrarmos no refeitório encontrávamos, nos pratos, bolinhos de arroz, à base de três ou quatro para cada um. Não em substituição à carne, mas como extra. Numa dessas vezes, estávamos na oração preliminar, quando se descobriu, num dos pratos, um bolinho de forma curiosa: lembrava um rato, em tudo, até no rabinho! Alguém lhe deu um toque e.... a reação teria sido uníssona gargalhada, se não fosse o momento e o olhar severo do padre conselheiro, regente do refeitório que, terminando a oração, acenou com o “assentem-se”, enquanto que ao nosso grupo acenava para que permanecêssemos de pé. Antes do Deo Gratias (permissão para conversação) dirigiu-se para nossa mesa. Na qualidade de chefe de mesa, posicionei-me respeitosamente à sua espera, pois nesses casos quem respondia era um dos chefes de mesa que, no caso dos semi-internos, era apenas um, pois o grupo era de onze alunos. Olhando-me, firmemente, nos olhos, como se tentasse arrancar lá do fundo o mais tenebroso segredo, perguntou:

- Moço, qual o motivo do riso no momento da oração? – Enquanto eu apontava o bolinho esquisito, o colega mais próximo lhe deu um toque de forma que a cara do “rato” se virou para o Pe “Quaresma” (apelido dado, secretamente, pelos alunos ao padre Paulo, o conselheiro). Onde seria a cara do “rato” estava incrustada cabeça de barata com aqueles olhinhos bem em cima de quem se postava à frente. Num movimento brusco, o padre levou as duas mãos à boca, para conter riso estridente, mas, pelos seus olhos, percebemos que ele também achara a coisa engraçada. Só não queria se destemperar, o que não ficaria bem em sua posição de chefe de disciplina. Em seguida, deu sinal a um dos copeiros, pedindo que providenciasse a troca do prato.

Embora a cozinha fosse coordenada por freiras, também salesianas, espírito molecão parecia prevalecer entre as auxiliares, funcionárias leigas. Era evidente que se tratava de brincadeira bem tramada. O perfeito formato de rato, que não dispensou nem o rabo, com a cabeça de barata estrategicamente colocada, não deixava dúvida. E, para confirmar o caráter brincalhão, o prato fora colocado na mesa dos semi-internos! Como brincadeira o incidente foi encarado. Ninguém fez cara de nojo, ou reclamou, e os bolinhos “normais” foram consumidos sem qualquer problema.

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