Reminiscências e nostalgia

10 de Novembro de 2017
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Nem só de bordoadas alimenta-se uma coluna de jornal, como esta que, em vinte nove anos, poucas vezes tratou de amenidades, mesmo porque, para tratar de coisas leves está de plantão a colega Valdete Braga. Entre as poucas vezes inclui-se esta, direcionada a Ouro Preto, mais especificamente à Rua São José, onde já ecoou muito do romantismo ouro-pretano (preferiria que fosse sem hífen) depois do cenário sombrio de Vila Rica, nos tempos de conjuração, não de inconfidência, porque esta se deu em Cachoeira, mais precisamente no Palácio da Cachoeira. Como cachoeirense destoo entre os meus, que não nutrem muita afabilidade pelo distrito-sede, contrapartida à apatia sob a qual Cachoeira era vista e tratada por aquele. Diz-se “era”, no passado, porque a situação já melhora; de lá já frequentam Cachoeira do Campo, chegando a haver quem escolha este distrito secundário para residência. Presume-se que a repulsa mútua, gravada no inconsciente coletivo, seja originária de fatos dolorosos destoantes dos anseios locais, tanto lá quanto cá, pelos quais uns e outros se culpavam, mutuamente.

No último ano dos cinquenta, em direção ao distrito-sede, deixei o berço, que era então uma localidade quase desconhecida, meio abandonada, muitas ruínas e em franca decadência com relação às atividades socioeconômicas e culturais. A Ouro Preto de então era uma cidade de fachadas, aceitando-se seus sobrados vistos de frente, mais ou menos apresentáveis. Pelos fundos formavam um conjunto desagradável aos olhos, totalmente incompatível com o visto diretamente da rua onde se situavam. Eram tempos difíceis, ainda sem o turismo bem ou mal explorado, quando servidores municipais dificilmente viam dinheiro, recebendo seus salários em forma de vales para compra em casas pré-indicadas. Por exemplo, o 8 de julho de 1959 teve o show de aniversário da cidade, aos pés da estátua de Tiradentes, sob a luz de velas, porque o fornecimento de energia havia sido cortado, devido à inadimplência da prefeitura junto à companhia de eletricidade local.

Os costumes eram simples, muita solidariedade, mas, em compensação e segundo o próprio povo, estudantes de engenharia mandavam na cidade, mais do que as próprias autoridades. Isso ficou patente certa vez quando todo o centro histórico ficou às escuras. Na calada da noite, munidos de uma vara equipada, numa das extremidades, com uma latinha forrada, estudantes subtraíram todas as lâmpadas da iluminação pública. O coração da cidade era a Rua São José, onde o mais importante se realizava ou acontecia. Era nela que surgiam namoros, durante o “footing”, às noites de domingo, da Ponte dos Contos ao Largo da Alegria. Enquanto isso, o cinema, programa principal, retinha grandes filas por ocasião de lançamentos, como “E Deus criou a mulher”, que gerou protestos puritanos. No carnaval, a população ali se espremia e se divertia com ou nos blocos “As Gatas” (Rosário), “Os Baitolas”, “Camisolões”, “Nata da sociedade” e outros, tudo se encerrando com o majestoso desfile do Clube dos Lacaios, tendo à frente, quatro ou cinco bem escolhidos cavalos, montados por clarins (tocadores de). O ribombar dos bumbos e matraquear das caixas e taróis levavam a temer pelo estilhaçamento de vidraças! Atrás vinham seus carros alegóricos, geralmente três, entre os quais, no carnaval de 1959, estava a homenagem relativa ao Sputinik, primeiro satélite artificial, lançado pela União Soviética, em outubro de 1957. Ainda era o carnaval arte com muita crítica aos políticos; carnaval do povo, feito pelo povo, com o povo e para o povo!

Na mesma rua faziam-se apostas no “bolão do Morais”, precursor local da Loteca e inspirador de outros jogos oportunistas. Às vésperas da execução do Caryl Chessman (maio/1960) o “bandido da luz vermelha”, nos Estados Unidos, foi feito o bolão em torno da comutação ou não da sua pena de morte. Ganhou quem apostou no “não”. Quando caiu parte de um sobrado triplo, na São José, apostou-se na data aproximada da queda do que restara acima. Parte do terceiro piso ficara dependurada, mas ninguém ganhou, com exceção do autor, porque nada mais caiu. Teve de ser demolido para a reconstrução, agora de apenas dois pisos. Pela Rua São José passavam todas as procissões; e, como havia procissões em Ouro Preto! Dizia-se que até se inventava santo para fazer procissão!

Hoje, a rua não mais é a mesma; tudo se transformou, desapareceram muitos do seus personagens; mudaram-se costumes; fecharam-se lojas, abriram-se outras. Na Rua São José, hoje, dominada por carros, nem mais se anda como antigamente. Em compensação, felizmente, para os nem tão presos à azáfama do quotidiano, sobra a nostalgia sugerida pela natureza, quando se passa pela Ponte dos Contos. À montante e à jusante, gorjeios de sabiás, agora como outrora, fazem lembrar que o bem e o bom ficam gravados em nosso espírito, embora tudo possa conspirar ao contrário.

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