Sortudo

04 de Agosto de 2013
Valdete Braga

Valdete Braga

Ela era uma velhinha que morava sozinha, em uma grande casa. Não tinha amigos porque, ao longo dos anos, ela os vira morrer, um a um.

Seu coração era um poço de saudade e de perdas. Por isso, ela decidira que nunca mais se ligaria afetivamente a ninguém. E, para se lembrar que um dia tivera amigos, passou a chamar as coisas pelos nomes dos amigos que haviam morrido.

Sua cama se chamava Belinha. Era grande, sólida e confortável. Mesmo depois que ela se fosse, Belinha continuaria a existir. A poltrona confortável da sala de visitas se chamava Frida. Haveria de durar muitos anos mais. A casa se chamava Ana. Tinha sido construída há mais de cem anos, mas não aparentava mais do que vinte. Era feita de madeira muito forte, vigorosa. E o carro, grande e espaçoso, se chamava Beto. E assim vivia a velhinha solitária.

Certo dia, quando estava lavando a lama de Beto, um cachorrinho chegou ao portão. O animalzinho parecia estar com fome, e ela tirou um pedaço de presunto da geladeira e o deu ao cão, mandando-o embora. Porém, no dia seguinte, ele voltou. E no outro e no outro. Todos os dias ele vinha, abanava o rabo e ela o alimentava, mandando-o embora.

Ela dizia que Belinha não comportava um adulto e um cachorro, que Frida não gostava que cães se sentassem nela e que Ana não tolerava pêlo de animal. Quanto a Beto, este fazia os cachorros passarem mal.

Um ano depois, o animal estava grande, bonito, e tudo continuava do mesmo jeito. Um dia ele não apareceu. A velhinha ficou assentada na escada, esperando. No dia seguinte também. Nada. Resolveu telefonar para o canil da cidade e perguntar se eles tinham visto um cachorro marrom. Descobriu que eles tinham dezenas de cachorros marrons.

Quando perguntaram se o cão estava usando coleira com nome, ela se deu conta de que nunca havia dado um nome para ele. Onde quer que estivesse, ninguém saberia que ele tinha de vir todos os dias, até o seu portão, para que ela lhe desse de comer. Tomou uma decisão. Dirigiu Beto até o canil e falou com o encarregado que queria procurar o seu cachorro. Quando ele perguntou o nome do cachorro, ela se lembrou do nome de todos os amigos queridos aos quais havia sobrevivido. Viu seus rostos sorridentes, lembrou-se de seus nomes e pensou em como fora abençoada por ter tido estes amigos.

“– Sou uma velha sortuda” – pensou. E disse:
– O nome do meu cachorro é “Sortudo”.
E gritou, ao ver os cães no quintal: “– Aqui, sortudo”.
Ao som da sua voz, o cachorro marrom veio correndo.

A partir daquele dia, Sortudo passou a morar com a velhinha.

Beto até que gostou de transportar o cachorro. Ana não ligou para os pêlos. E todas as noites, Belinha fazia questão de se esticar bem para que nela pudessem se acomodar um cachorro marrom, Sortudo, e a velhinha que deu-lhe o nome.

Não temamos nos afeiçoar às pessoas. Ninguém consegue viver sem amor, sem amigos, sem ninguém.

Não nos enclausuremos em solidão, nem percamos a oportunidade extraordinária de amar. Amemos a quem nos rodeia, e também à natureza e aos animais, recordando que todos somos obras do Criador.

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