Tortura psicológica coletiva II

22 de Julho de 2017
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

Já que mexeram na ferida (a questão da rodovia) novamente, falemos um pouco sobre o inconsciente coletivo cachoeirense com relação aos meios viários, suas necessidades de deslocamento e o tratamento recebido do poder público em resposta às reivindicações atinentes ao mesmo assunto. Antes que surgisse o transporte mecanizado terrestre - o trem seguido do automóvel - Cachoeira do Campo era um polo de tropeiros, os grandes responsáveis pelo transporte de mercadorias, pela interação cultural, criação de povoados e, consequentemente, pela expansão demográfica no interior do país.

Na verdade, quando essa atividade era importante sustentáculo do desenvolvimento, o tropeiro estava classificado em duas categorias: o proprietário de tropas (empresário ou empreendedor) e o condutor de tropas, o mais rotulado como tropeiro pelo povo. O tropeiro empresário e o tropeiro condutor foram substituídos, respectivamente pela empresa transportadora e pelo caminhoneiro; o caminhoneiro todos o conhecem, mas a transportadora, nem sempre.

Pois bem, desde seus primórdios até o final do século XIX ou início do século XX, Cachoeira teve como uma das atividades econômicas o negócio dos tropeiros, cujas tropas alcançavam até o estado do Rio. Tão marcante era atuação das tropas e tropeiros em Cachoeira do Campo que, à sua volta e a lhe dar suporte, desenvolveu-se a produção de artefatos de couro destinados ao transporte de carga e à montaria: sela, arreio, cangalha, chicote, laço, rabicho, tala, chicote, cabresto e tudo mais necessário. Cabia aos ferreiros a produção de todas as guarnições e acessórios metálicos, destacando-se aí as ferraduras. Com base na necessidade do transporte, então em lombo de animal, desenvolvia-se a economia local, que incluía também uma pujante agropecuária.

Em 1888, por obra do governo imperial, mais especificamente do imperador D. Pedro II, Ouro Preto, então capital da província de Minas, ligou-se à corte, Rio de Janeiro, por meio da ferrovia, a denominar-se Central do Brasil pelo governo republicano, pouco mais de um ano depois. Com relação aos meios viários, mediante os quais se safasse do isolamento, iniciou-se aí o conflito de interesses entre a comunidade cachoeirense e o poder público. Para o restante do país, a ferrovia era o progresso e por ela viria o próprio, mas para Cachoeira do Campo ela representava o começo do fim de uma era, se não de prosperidade, pelo menos, de estabilidade sobre lombo de burro. Como se não bastasse a punhalada na economia local, a ferrovia cortava o território cachoeirense, algo quatorze quilômetros longe do perímetro urbano, na região conhecida como Trino, onde foi estabelecida, originalmente, a estação Hargreaves. Se, pelo menos, a viagem de trem lhe fosse favorável, o cachoeirense teria pequena compensação, mas, nem isso. Em caso de embarque, primeiro teria que percorrer, a pé, os quatorze quilômetros, em trilha, pois automóvel ainda não havia. Se o destino fosse Ouro Preto, relativamente mais distante que Belo Horizonte hoje, melhor seria ir direto, a pé! Situação cruel, mas que recebeu um sedativo sob a forma de decreto do governo mineiro, já na República.

Pelo decreto, o governo criava um ramal a ligar a então estação Hargreaves à vila de Cachoeira do Campo. Reacenderam-se as esperanças de ter o trem mais à porta, para o caso de um viagem, coisa extraordinária para a época. Contudo, é bom esclarecer que o decreto não era devido aos belo olhos de Cachoeira do Campo. O que atraia o anunciado ramal eram os salesianos, que abriram as Escolas Dom Bosco em 1895. Mas, nem a força dos salesianos foi capaz de fazer o governo cumprir o decreto, o que não impediu de a população local continuar à espera da ferrovia. Durante mais ou menos sessenta anos, ainda se cria entre os locais que a ferrovia ainda viria. Bastava se ver a execução de algum serviço de topografia, nas imediações, para que os trilhos surgissem na imaginação dos simplórios.

Um dia, depois de tantos boatos animadores, que em seguida se revelavam falsos, instalaram-se, de fato, as obras da construção de uma ferrovia, o que reavivou as esperanças cachoeirenses, mas, outra vez, os fatos pareciam estar a brincar com a população local. A ferrovia da Vale tangenciou o território rural, mas nenhum serviço ou benefício direto proporcionou a Cachoeira do Campo. Ela acabou por trazer pessoas e famílias, que aqui se radicaram e se integraram à comunidade, enriquecendo-a, cultural e socialmente. Mas, como serviço de transporte a dita ferrovia nada serve a Cachoeira do Campo, constituindo-se, na verdade, o ápice das frustrações sofridas ao longo dos anos, desde o decreto mentiroso do governo estadual, no início desta insana República!

Comments powered by Disqus

Newsletter

Acompanhe-nos

Encontre-nos no Facebook