Tortura psicológica coletiva V

11 de Agosto de 2017
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

À mesma época, anos vinte, da abertura da primitiva estradinha de automóvel Ouro Preto/Belo Horizonte, Cachoeira do Campo recebeu o impulso de dois empreendimentos, que vieram sacudir e levantar a localidade do marasmo, reacendendo ainda o orgulho dos cachoeirenses machucados com as perdas, desde trinta anos antes. Imagine-se uma localidade, população bem reduzida, isolada de tudo e destituída de qualquer recurso, que lhe permitisse promover o desenvolvimento. Era Cachoeira do Campo.

Contudo, a compensar essas deficiências, a comunidade era dotada de cabeças pensantes, audazes, predispostas ao enfrentamento de dificuldades além da rotina conhecida pela maioria. Tinham consciência de que o potencial produtivo da localidade, embora já depauperado, era suficiente para sustentar a economia local por algum tempo. Um grupo dessas lideranças decidiu dotar Cachoeira de iluminação elétrica, benefício então só conhecido por cidades mais desenvolvidas. Foi assim que, em 30 de dezembro de 1928, o cachoeirense pôde sair, do bruxulear do lampião e da lamparina a querosene, para o brilho ofuscante da lâmpada elétrica, depois de constituída a empresa Companhia Força e Luz Cachoeirense, cuja usina se instalou, no Rio Maracujá, abaixo da corredeira, à jusante da Ponte do Palácio. Naquela data, a população se entregou às comemorações que, das 8h00 se estenderam além das 21h00, conforme boletim-programa dos festejos. Dotada de energia, era de se esperar por mais ações a partir da própria comunidade.

Foi o que aconteceu. Pressupõe-se que, por trás da iniciativa da iluminação elétrica, já estaria a ideia de um empreendimento dependente de energia. A luz seria apenas a embalagem reluzente, com que se envolvia o presente: a energia elétrica para fazer trabalhar máquinas e motores. Grupo familiar formado por pai e filhos considerou a possibilidade de aproveitamento de parte da mão-de-obra ocupada no artesanato em couro, atividade já mais difícil, à época, de se sustentar individualmente. Instalou-se uma fábrica, onde se produzia um tipo de chinelo, como carro-chefe, seguido de todos os utensílios e acessórios destinados a montaria e animais de carga. Tal fábrica empregou homens e mulheres (além de tarefeiras domésticas) até os anos 60, mais ou menos. Observe-se, e isso precisa ser bem frisado e firmado na consciência de cada um, na atualidade, que Cachoeira do Campo sobreviveu às perdas ocorridas na virada do século IX graças a essas duas iniciativas locais, sem nenhuma participação externa, muito menos oficial, mesmo porque a sede do município ficara entregue ao “Deus dará” pela incúria do governo mineiro, que se mudou sem antes preparar a cidade de Ouro Preto, para se sustentar com as próprias pernas. Dadas as condições da época e circunstâncias enfrentadas pela comunidade, os dois empreendimentos constituíram vitória empresarial sem paralelo na atualidade regional.

Da parte oficial, ou seja do governo, iniciativa que revertesse tendências na economia local só viria mais tarde, nos anos 40, para surtir efeitos, de fato, somente a partir dos anos 70, quase ao final do século XX. Em 1946 já estava em Cachoeira parte do pessoal contratado para construção da nova estrada de rodagem, que ligaria Ouro Preto a Belo Horizonte, a antiga à nova capital. Finalmente, depois de quase meio século, novidade vinda de fora criava um clima de otimismo na população que, mesmo assim, ainda aguardava a estrada de ferro. Ao contrário de hoje, quando abertura de estrada põe máquinas em evidência, naquela época era o elemento humano o mais requisitado, abrindo oportunidade à migração interna, povoamento do interior com a expansão de pequenas localidades e criação de outras. Foi assim que, de repente, Cachoeira saiu da monotonia para o bulício trazido por muita gente, que aqui aportou por conta do trabalho, na abertura do novo caminho, que poria a localidade mais ligada ao mundo lá fora.

Enquanto durou a obra na região, a economia local revigorou-se, com o aproveitamento da mão-de-obra, estímulo ao comércio e prestação de serviços. Pode-se dizer que todos os setores se beneficiaram da presença daquele contingente externo: oficinas de calçados que, além dos concertos, fabricavam sapatos sob encomenda, os alfaiates, as costureiras, as bordadeiras, até quem produzia guloseimas e petiscos para venda de porta em porta. A maior parte daquele pessoal esteve de passagem, durante a obra, tomando outro rumo, quando a necessidade de sua permanência aqui se extinguiu. Outra parte veio, gostou dos ares cachoeirenses, trouxe os seus que, por sua vez aqui constituíram família, expandindo o potencial local e somando culturas. Assentou-se, àquela época, a base para a realidade atual.

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