Tortura psicológica coletiva VI

21 de Agosto de 2017
Nylton Gomes Batista

Nylton Gomes Batista

A segunda metade dos anos 40 foi de efervescência, em Cachoeira, com a chegada do grande contingente de pessoal para as obras da estrada projetada. Parte ficou alojada em acampamento específico e outra parte em casas alugadas na localidade. Era gente de procedências diversas, creio que a maior parte do nordeste, a julgar pela denominação “baianos”, dada a eles pela população local. É fato notório que, nestas paragens, “baianos” eram todos que falavam com o característico sotaque nordestino, incluindo-se até o próprio mineiro do norte, que costuma ter o mesmo sotaque, assim como o mineiro do sul que fala como paulista, Para a meninada mais taluda e meio liberta das amarras paternas, as atividades obreiras eram uma festa e, portanto, oportunidade para peraltices de todos os tipos, sem atentar para o perigo que os rondava, nas brincadeiras, como saltos na terra solta dos aterros em formação. Alguns feitores impediam a intervenção moleque, mas outros não faziam o mínimo gesto com a mesma intenção.

O trabalho era todo feito a mão, ou seja, com pá e picareta; nada de trator, ou coisa movida a motor. O que mais se assemelhava a máquina era a carroça, multiplicada por algumas dezenas, cada qual puxada por um burro. Os "picareteiros", à frente cortavam os barrancos, os das pás enchiam as carroças e estas, em longas filas, eram conduzidas pelos carroceiros até o ponto de descarga da terra, nos aterros. Era divertido ver o comportamento dos burricos, muito disciplinados e obedientes. O momento de descarga da terra era destaque. A um sinal ou grito do carroceiro, o animal executava uma manobra perfeita até se colocar de costas para o aterro, momento em que andava à ré até se posicionar no ponto ideal. É claro que, de vez em quando havia um burrico teimoso a dar mais trabalho ao seu dono, só para contrariar a maioria. Era um movimento constante de homens, animais e carroças, enquanto barrancos eram cortados e aterros formados. Somente pequeno trecho, entre Cachoeira e Ouro Preto, foi rompido com o uso de máquinas, das mais possantes da época. Enquanto intervenções posteriores não se fizeram para alargar e asfaltar a rodovia, eram vistas, nas rampas laterais, as marcas deixadas pelas picaretas, tão uniformes que pareciam executadas por máquinas.

Agora, uma curiosidade com relação ao traçado projetado para a estrada nesta região. Em Amarantina, segundo rumores na época, a estrada cortaria o núcleo urbano ao meio, com o que não concordaram as lideranças daquela comunidade, grande produtora do melhor que, então, se conhecia. Houve forte resistência que, recebendo apoio de instâncias superiores, forçou o desvio da estrada para fora localidade. Já em Cachoeira, segundo se dizia, no sentido Belo Horizonte/Ouro Preto, o projeto previa desvio para a esquerda, pouco antes da ponte da Vargem, contorno parcial da “serra” da Mãe Engrácia, para cruzar o núcleo urbano ao final das ruas 7 de Setembro, Santo Antônio, e início da Rua Tombadouro. Desse ponto ela seguiria, mais ou menos, em linha reta até o Fecho do Funil. O que determinou a alteração, não se sabe, suspeita-se, razão pela qual se impõe silêncio. De acordo com o traçado original a construção teria economizado duas obras de arte, ou seja, a ponte da Vargem, logo ao final da rampa na saída para Belo Horizonte, e a ponte do Vai-e-Vem, na saída para Ouro Preto. Teria economizado ainda o rompimento, a fogo, de dois cortes em pedra, coincidentemente, logo após a saída de cada ponte, sentido Belo Horizonte/Ouro Preto. O da Vargem, devido ao volume e altura, ainda se conserva, mas o do Vai-e-Vem, praticamente, desapareceu com as obras posteriores do alargamento e pavimentação asfáltica.

O perigo rondava, no tempo e espaço das explosões, com o lançamento de grandes pedras a boas distâncias, às margens da estrada, atingindo áreas como o então conhecido “campo da gabiroba” devido à notável ocorrência daquela fruta silvestre. O campo da gabiroba situava-se em seguida à região, antigamente denominada “Jardim” (do Oratório ao novo supermercado). Embora as explosões não fossem bem controladas, expulsando pedras a tão longa distância, creio não ter havido nenhum acidente em decorrência disso. Ao contrário, nos cortes de terra, houve desbarrancamentos e soterramentos com, pelo menos, um operário morto. Essa morte ocorreu na última curva, antes da reta do Dom Bosco, sentido Ouro Preto. De longe, vi quando grande parte da terra escavada rolou e colheu o homem, que caíra, ao tentar fugir como os demais. Outros acidentes como esse podem ter ocorrido, mas deles não me lembro ter ouvido falar.

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